Público - 15 Fev 03
Os Limites do Jornalismo
A Direcção Editorial
"A ciência do jornalista é combater a injustiça sem cair nela" escreveu um dia
Milan Kundera. Por estes dias, por causa da pedofilia, muitos têm esquecido essa
verdade elementar
O escritor checo Milan Kundera escreveu um dia que "a ciência do jornalista é
combater a injustiça sem cair nela". Eis algo que todos os jornalistas deviam
ter bem presente por estes dias.
Desde a prisão de Carlos Cruz, e do choque emocional que ela provocou no país,
que grande parte do espaço informativo, sobretudo nas televisões, tem estado
ocupado pelo tema. Tal como sucedera aquando das primeiras revelações sobre o
escândalo de pedofilia de que eram, ou tinham sido, vítimas crianças da Casa
Pia, que a tentação "voyeurista" se sobrepôs demasiadas vezes à serenidade. Uma
coisa é o dever de informar e, sendo a pedofilia uma das maiores injustiças que
se pode fazer a uma criança, o dever do jornalista era "combater a injustiça".
Infelizmente já se foi muito para além disso.
Foi-se quando, no início deste processo, se passou e repassou filmes de
pornografia infantil nas televisões, quando se usou e abusou da memória das
vítimas, quando se recolheram depoimentos avulso com acusações vagas ou
suspeições que ninguém confirmaria.
Foi-se agora de novo, muitas vezes voltando ao mesmo pecadilho de passar e
repassar testemunhos de vítimas, outras vezes esticando até aos limites a pouca
ou nenhuma informação que se possuía, por fim deixando-se os próprios
jornalistas envolver emocionalmente nos casos que relatavam.
O que se passou anteontem à noite, no principal serviço informativo da SIC,
ultrapassa porém o imaginável. E o que ontem "O Semanário" publicou, citando a
existência de listas e de nomes que delas fariam parte, envolvendo nisso um
membro do Governo, ultrapassa todas as margens da decência.
Num primeiro momento, alguns jornalistas, ao vestirem a capa de um qualquer
justiceiro implacável, podem julgar que, para além de cumprirem o seu dever, são
também eles heróis. Mais: heróis populares, reconhecidos na rua, porventura
aclamados. Nesse momento, porém, violam uma regra de ouro da deontologia
profissional: é que o jornalista não é notícia, dá a notícia. Quando o
jornalista se coloca ele no palco na notícia, então algo está profundamente mal.
Ao longo de todo este processo o PÚBLICO tem procurado manter a serenidade e
fugir da facilidade. Noticiar apenas o que confirmámos várias vezes, por fontes
diferentes, para evitar qualquer instrumentalização. Ir além da
espuma das notícias, e do aroma inebriante do escândalo, para procurar discutir
o que está por detrás de fenómenos que nos chocam e perturbam.
Preferimos perder uma notícia, adiar a sua publicação porque não temos a certeza
da sua veracidade, do que correr o risco de em nome da justiça, cometer uma
injustiça. Até porque temos consciência que estas injustiças, pelo opóbrio que
fazem cair sobre os atingidos, são irreparáveis.
Outros têm seguido outros caminhos. Tão escorregadios que tememos que, quando o
pano cair sobre este drama e os jornalistas se lançarem a outro tema, a sua
credibilidade já esteja ferida de morte. E isso não é só grave para o
jornalismo, os jornalistas e as empresas jornalísticas: é grave num país que, ao
assistir assombrado à queda de todas as suas referências, ficará mais descrente,
atordoado e deprimido.
O jornalismo não serve apenas para vender jornais e conseguir audiências. É, ou
devia ser, um serviço público. Que pena que tantos o esqueçam, tantas vezes.
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