Público - 19 Fev 03

Crise de Valores - Prós e Contras

Assisti numa das últimas segundas-feiras ao programa Prós e Contras da RTP em que se debatia a crise (ou não) de valores na sociedade portuguesa. Os convidados principais do programa eram pessoas que me merecem o maior respeito e consideração não só pela craveira intelectual que lhes reconheço mas também pelo seu percurso cívico como figuras públicas já há muitos anos. Gostaria contudo de registar a frustração de muitos portugueses, como eu, por não termos assistido a um verdadeiro debate de ideias onde democraticamente se confrontassem modos diferentes de chegar aos padrões do viver em sociedade e ao próprio sentido da existência. A unanimidade de pontos de vista foi tanta que mais valia estarem todos sentados do mesmo lado sem opositores! Muitos dos espectadores sentiram até uma certa angústia ao perceberem que essa unanimidade podia ser, ela própria, mais um sinal da crise de valores que se pretendia, precisamente, debater. Conhecendo nós demasiado bem as posições ideológicas dos convidados e a matéria delicada e sempre controversa que estava em causa, seria lógico que esperássemos assistir a um esgrimir de argumentos vindos de concepções diferentes da ética e da moral que subjazem, afinal, aos tais valores em discussão.

Pasmamos assim quando, por exemplo, não vimos proferido por nenhum dos vários convidados assumidamente católicos (uns leigos, outro padre) o défice de espiritualidade da nossa sociedade - que nos tornou há décadas órfãos de Deus - e a falta que nos faz essa ligação a um qualquer transcendente que nos pode dar o cimento social necessário para uma via de esperança no futuro.

A conversa arrastou-se penosamente por banalidades de todos conhecidas, tais como a alienação pelo consumo desenfreado e acrítico, a busca do sucesso a qualquer preço e a falta de solidariedade perante o número crescente de pobres e excluídos. Por paradoxal que pareça, foi até da boca do convidado aparentemente mais agnóstico e mais à esquerda que ouvimos da necessidade de dar testemunho no dia-a-dia das bem-aventuranças cristãs, fruto de um processo moroso de grande reflexão e autoconhecimento.

Numa altura em que várias correntes filosóficas apelam a uma espiritualidade laica, baseada em valores que transcendam a condição humana; numa altura em que as novas pedagogias laicas apontam para a necessidade de uma formação religiosa nas escolas que seja a base e a ferramenta da estruturação de todos os outros conhecimentos; quando se fala que muitas das dificuldades de aprendizagem e compreensão da juventude actual advêm da gritante incultura religiosa; quando tudo isto se sabe e não se traz à discussão, algo vai mal neste reino que não é da Dinamarca. Exigia-se muito mais a tão ilustres personalidades e perdeu-se mais uma oportunidade de chamar as coisas pelos nomes, ficando depois, óbvia e democraticamente, uns a favor e outros contra.

José Carlos Palha

Gaia
 

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