Público - 26 Fev 03
Falta de Responsabilização e de Motivação São Os Maiores Problemas da
Universidade
Por ANDREIA SANCHES
Entrevista com Ana Bela Cruzeiro
Propinas mais altas, sim, mas com um sistema de empréstimos que garanta que as
famílias não são mais sobrecarregadas. Além de ser um regime mais justo,
responsabilizaria mais os estudantes. Responsabilização é, de resto, uma
palavra-chave para a presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Dos
alunos. Dos professores. E do Estado, a quem cabe definir o que quer das
universidades.
"É possível que tenham andado aí umas pessoas a fazer uns relatórios", mas na
verdade a avaliação das universidades e politécnicos não existe. Ou é "um mero
exercício de retórica", porque não tem quaisquer consequências - por exemplo, no
financiamento das escolas. Ana Bela Cruzeiro, presidente da Sociedade Portuguesa
de Matemática, diz que actualmente "ninguém manda nas universidades".
PÚBLICO - Critica o modelo escolhido pelo ministro Pedro Lynce para encetar o
debate sobre a reforma do ensino superior. Porquê?
ANA BELA CRUZEIRO - O debate público sobre estas matérias é salutar. Mas
penso que andamos todos um bocado fartos destes debates. Há, no "site" do
ministério, um inquérito que serve de mote à discussão, mas as perguntas, ainda
que focando assuntos centrais, estão feitas na base do: tanto pode ser isto como
exactamente o contrário.
Acho que devia haver uma proposta na mesa, onde se debatesse para que serve o
ensino superior hoje em dia e para que é que o Governo quer que sirva. As
universidades estão ligadas ao desenvolvimento económico do país e é preciso
fazer opções. Queremos apostar nas tecnologias? Queremos apostar num programa
espacial, no armamento, na investigação relacionada com os mares? Se calhar não
queremos nada disto, mas é fundamental definir projectos, ideias, até para
mobilizar as pessoas.
P. - Na sua opinião, quais são os pontos críticos do sistema?
R. - São dois essenciais: a falta de responsabilização e a falta de
motivação. Em primeiro lugar, ninguém manda nas universidades, nas faculdades...
P. - As instituições têm órgãos que tomam decisões...
R. - São ineficazes, perfeitamente ineficazes. A presença, nesses órgãos, de
uma percentagem tão elevada de estudantes e de funcionários não docentes é
surrealista. Mas essa é apenas uma das razões para a sua ineficácia. O pior é
que não é pedida responsabilidade a ninguém; se houver um problema, ninguém
assume, está tudo diluído. Não acontece nada a uma faculdade que não tenha
grande qualidade no ensino ou na investigação que faz. E é natural que as
pessoas não sejam responsabilizadas, porque ninguém é avaliado por aquilo que
faz.
P. - Falou da desmotivação dos professores. Que tipo de incentivos acha que
fazem falta?
R. - Não estou a falar de incentivos financeiros... Sei que há uma corrente
de pessoas que acha que se deve pagar mais aos melhores docentes. Eu não
partilho dessa opinião. Uma universidade não é propriamente um clube de futebol.
Há muitas maneiras de compensar os professores: em termos de progressão na
carreira ou de flexibilidade de horários, por exemplo.
Hoje em dia, um professor universitário dá entre seis a nove horas semanais de
aulas. Imagine a situação de um investigador extremamente activo, que tem muitos
alunos de doutoramento e dá as suas seis horas, no mínimo, como os outros todos.
E agora imagine-se a situação oposta: alguém que não faz investigação, que
praticamente não tem alunos, a não ser os das aulas de formação inicial, que não
tem nenhum de mestrado nem de doutoramento, que não participa muito na vida da
gestão da universidade... Essencialmente, o que essa pessoa tem de trabalho são
seis horas de presença numa universidade. Convenhamos que esta pessoa está muito
bem paga.
P. - O que está a dizer é que quem está mais dedicado à investigação devia
estar dispensado de dar aulas?
R. - Ou ter um horário mais reduzido, ou ter períodos de dispensa... E se um
professor está num período em que está menos ligado à investigação, deve ter
mais horas de aulas, mais até do que as nove estabelecidas como máximo.
P. - Outro tema que está em cima da mesa tem a ver com o modelo de
financiamento das instituições de ensino. O que é que deve mudar?
R. - O financiamento deve estar directamente ligado à avaliação que se faz da
instituição. A universidade deve ter uma grande autonomia e liberdade de escolha
dos seus cursos, dos seus perfis, do nível de ensino que dá, mas depois deve ser
avaliada e o financiamento tem de estar ligado aos resultados. Ora, actualmente,
as avaliações do ensino superior... bem, não sei se já ouviu falar delas, mas
aquilo essencialmente não existe!
É possível que tenham andado aí umas pessoas a fazer uns relatórios. Mas ninguém
se interessou muito em lê-los e, sobretudo, não tiveram a mínima consequência.
Se uma avaliação não tem consequências, é um mero exercício de retórica. As
avaliações dos centros de investigação funcionam, têm consequências. As das
universidades não.
P. - Acha que se devia classificar as escolas e que devia haver um "ranking"
de instituições?
R. - Com certeza.
P. - Que tipo de sistema de propinas defende?
R. - Esse é o tema quente. Acredito que o Estado deve ser o garante essencial
do financiamento das instituições de ensino superior, porque elas são
fundamentais ao desenvolvimento da sociedade, pela transmissão da cultura e do
conhecimento. Não acho nada que isto deva ser tudo mais ou menos privatizado e
cada um faz o que quer.
Contudo, o Estado também não é uma entidade abstracta. As verbas do Estado vêm
dos impostos dos contribuintes, de todos nós, por isso não vejo nenhuma razão
especial para que todos os alunos contribuam da mesma maneira para o
funcionamento do ensino superior. O que não deve significar sobrecarregar as
famílias. Como é que tudo isto se concilia? O mais justo é aumentar as propinas
e aplicar um sistema de empréstimos.
As propinas poderiam corresponder a uma parte substancial do financiamento do
ensino (não a maior parte, mas uma boa parte). Os empréstimos, em condições
muito favoráveis, seriam pagos ao longo da vida pelo alunos, em função dos
rendimentos que aufeririam da sua vida profissional. Se houvesse uma catástrofe
e o aluno não conseguisse fazer nada com o curso, então não pagava nada. O
sistema de empréstimos tem ainda outro benefício: vai ajudar a responsabilizar
mais o estudante.
P. - No livro "Ensino Superior: Uma Visão para a Próxima Década", que é
considerado como um dos documentos de trabalho para a reforma do superior,
propõe-se a criação de um conselho estratégico em cada universidade, com poder
de decisão, onde metade dos membros são exteriores à universidade. O que pensa
disto?
R. - Uma óptima ideia. É fundamental que a sociedade civil tenha algo a dizer
da universidade.
P. - E acha que a maioria das pessoas nas universidades vai concordar?
R. - Se estivermos à espera que a mudança das universidades parta das
universidades, é melhor acabarmos já com a discussão sobre a reforma do ensino
superior.
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