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Diário de Notícias - 20 Fev 03
Atenção aos vermelhos!
ALFREDO MENDES
São antecedidos de um amarelo torrado a fugir como o mafarrico da cruz no
momento preciso do automobilista passar. «Não, senhor doutor juiz, eu não vi os
vermelhos.»
É a miopia institucionalizada. Não ver vermelhos, maccarthismo luso. Em fila de
espera faíscam os olhares na sala de audiências do Tribunal de Polícia, durante
anos sito na Rua João das Regras, homem de leis do reinado de D. João I.
Endomingados e cumprimenteiros conforme ordenam as composturas, arguidos e
testemunhas aguardam ansiosamente pelo veredicto. Ele há de tudo. Agentes
económicos, tão económicos que não pagam impostos, apologistas da sociedade
civil (está na moda), de menos Estado e sempre à volta dos subsídios estatais,
«não é um vermelho que me faz parar», cochicham. Meninas queques de jipe a 120 à
hora a caminho da faculdade, «era o que faltava, ando stressada, pecebe?, estou
a borrifar-me para os vermelhos», sussurram. Vendedores de fato azul, emproados,
«já foi tempo de respeitar os vermelhos, tinha clientes de tanga à espera», a
justificação. Executivos da capital, perfilados, «odeio vermelhos e encarnados»,
confessam. Biscateiros da Areosa, «os vermelhos são um atraso de bida, a polícia
havia de reparar na falta de inducação, trabalho como uma besta e na estrada só
me chamam boi».
Olhe, fala uma pataqueira do Bom Sucesso, atire-lhes assim, «muitos brados cabem
no cu do lobo. Os vermelhos são a nossa desgraça».
Um após outro, respondendo à chamada do funcionário judicial, ficam de pé frente
ao meritíssimo, a cabeça levemente inclinada em sinal de aceitação pela
guilhotina legislativa. Juram dizer a verdade e só a dita, alegando a mesma
razão.
«Não, senhor doutor juiz, não vi os vermelhos. Quando ia a passar na Boavista
estava o amarelo.» Mas... «o agente autuante insiste que desrespeitou os
vermelhos, isso pode ser fatal», argumenta o magistrado. E de seguida a multa, a
inibição de conduzir, as respectivas cauções, enfim, o Goulag do Código da
Estrada.
Na casa dos 50, Manuel Feliciano acusado da mesma infracção. Não enxergara o
vermelho, explicou em tom de clemência, olhar de carneiro mal-morto. Na
qualidade de testemunha abonatória, o patrão com residência no Passeio das
Virtudes. Bonacheirão, desfia encómios ao empregado, pessoa de bem, cavalheiro
subordinado à trilogia do pare, escute e olhe, atitude ultrapassada.
Peremptório, o administrador de leis sentencia os prevaricadores, certamente
enfastiado pela unicidade amarela.
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