Público - 2 Fev 04

Em Defesa da Honra
Por MÁRIO PINTO

1. Na passada terça feira, no noticiário do Canal 2, o deputado Francisco Louçã disse: «uma minoria fanática» continua a querer que as mulheres sejam condenadas por crime de aborto. Como pessoalmente defendo que o aborto voluntário deve ser criminalizado, fui assim incluído na «minoria de fanáticos» que o ilustre político e ideólogo da extrema-esquerda decretou. Consequentemente, tenho direito à defesa da honra. E como não posso negar a mim próprio a palavra nesta tribuna do jornal Público, segue-se que não tenho mais remédio do que tomá-la para o efeito. Em breves termos.

1.1. Quanto a estar ou não em minoria, o deputado Francisco Louçã, tão estrénuo defensor da democracia, bem que podia deixar a cargo dos eleitores decretar maiorias e minorias. No último referendo sobre a projectada lei que pretendia alargar a licitude do aborto, votei com a maioria e foi Francisco Louçã que ficou em minoria. Actualmente, no Parlamento, também não pode, nem ele nem o seu partido, considerar-se em maioria, e muito pelo contrário. Quanto ao próximo referendo, se vier a ocorrer, e eu admito que sim no tempo adequado (imagino que se o anterior tivesse resultado ao contrário, Francisco Louçã considerá-lo-ia definitivo, mesmo não sendo vinculativo), espero voltar a ficar em maioria. Até lá, este tipo de declarações tem mais a ver com a propaganda tipo «agitprop» do que com uma postura democrática.

1.2. Mas gravíssimo é o labéu de fanatismo - que aproveita as conotações do conceito com certos fenómenos como o dos talibans e quejandos. É inacreditável que o deputado Francisco Louçã declare publicamente que os opositores ao aborto voluntário, que não se cansam de explicar e argumentar jurídica e racionalmente em defesa do direito à vida, se reduzem a uma minoritária espécie de sádicos que querem fazer sofrer as mulheres. Trata-se evidentemente de um insulto infamante. E os insultos não se discutem: ignoram-se ou protestam-se, claramente. Ora, porque esta causa não é minha a título individual, mas é uma causa do humanismo, da civilização e da Igreja Católica a que pertenço, não posso ignorar o insulto e tenho de repará-lo. Além disso, os excessos insultuosos dos pró-aborto têm sido muitos e, se não se lhes responde, corre-se o risco de parecer que têm uma razão esmagadora.

Por isso, senhor deputado Francisco Louçã, vejo-me forçado em consciência a devolver-lhe daqui: «minoritário fanático» é Vossa Excelência.

2. O ex-ministro da educação Santos Silva criticou o ministro da educação David Justino pelo atraso na publicação dos resultados das provas de aferição em português e matemática de 2002. David Justino explicou o atraso da divulgação, se eu bem percebi porque considerava necessário comparar aqueles dados com os do ano posterior.

Tem razão Santos Silva. Aquele argumento não justifica tal atraso na disponibilidade pública de dados tão significativos e facilmente legíveis. Eles têm um significado absoluto, mesmo que mereçam ser também apreciados em termos relativos. O seu tratamento e julgamento são operações que estão ao alcance intelectual dos cidadãos normais e, em especial, das comunidades de peritos.

O ministro David Justino, em resposta, lembrou o atraso na divulgação de informações semelhantes ao tempo do então ministro Santos Silva. Com razão. Mas tal crítica é um boomerang contra si próprio. Esta troca de posições entre ministro e deputado da oposição sugere que o lugar em que se está, na Administração ou na oposição, no poder político-administrativo ou na sociedade civil, impõe lógicas contrárias. Que grande conclusão!

Tenho presente o que David Justino defendeu enquanto deputado da oposição e observo o que agora vai ou não vai fazendo em várias áreas, designadamente quanto à liberdade de educação. Claro, governar é a arte do possível; mas do máximo possível, não do mínimo possível. E nunca contra a linha dos compromissos programáticos. Mudar de programa só por eleições.

3. Enquanto o País está aflito com problemas gravíssimos, do atraso e da crise na economia, da crónica ineficiência (praticamente em todos os sectores) da Administração Pública, dos desequilíbrios financeiros do Estado, dos trágicos impasses da educação escolar pública, do subdesenvolvimento na qualificação dos recursos humanos, da desagregação do tecido empresarial e do desemprego, do caos urbanístico, da desmoralização, do decréscimo do capital social, a política partidária continua sobretudo a alimentar e a alimentar-se dos «fait-divers» da efeméride - deve dizer-se, também com ganhos para a comunicação social.

Presto homenagem ao Presidente da República, pela evidente e corajosa atitude de não apenas se manter independente e acima do jogo partidário (como lhe é pedido pelas suas altas funções) mas, e sobretudo, porque a seu modo sinaliza a necessidade de urgentes consensos nacionais sobre grandes e estratégicos desígnios para o futuro de Portugal.

Tenho vindo a defender que, para vencer os seus maiores desafios de futuro, Portugal tem necessidade de um desígnio nacional estratégico apoiado pelo arco dos partidos, sindicatos e movimentos democráticos por assim dizer do grande centro - já que, sem que queira excluir ninguém, os partidos extremistas são contra esta estratégia. Não é a luta ideológica entre a esquerda e a direita, tal como tradicionalmente entendida, que pode resolver os problemas históricos que o País hoje defronta. Isso estabelece uma alternativa saudável entre duas forças, nenhuma das quais pode, só por si e com a oposição da outra, decidir e prosseguir por décadas o futuro estratégico do País. Não é evidente? Na situação portuguesa actual, só um consenso entre as duas grandes famílias, a socialista-democrática/social-democrata e a social-cristã (que são, note-se bem, as duas grandes famílias partidárias da maioria dos países democráticos da Europa e da América) pode garantir esse desígnio. É que, de facto, não se trata (nem será essa, suponho, a ideia do Presidente da República) de escolhas de políticas alternativas de administração e de desenvolvimento do País a prazo de uma legislatura. Trata-se, sim, de grandes escolhas estratégicas e da sua execução a prazo de décadas, escolhas que devem modelar e decidir irreversivelmente o futuro de Portugal.

Não é difícil de entender, para quem quiser entender.

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