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Público - 9 Fev 04
Sinais de Liberdade
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
A sondagem que hoje publicamos (pág. 20) traz-nos boas notícias. Notícias
que, de alguma forma, podem aquietar Luís Salgado Matos sobre o momento em
que os portugueses entenderão a importância de se ser de boas contas. "O
leitor perceberá a vantagem das boas contas quando deixar de receber a
pensão de reforma - ou quando tiver a certeza que nunca a receberá",
escreve este nosso colaborador. "Esperemos que não o perceba tarde
demais", acrescenta - mas aparentemente já percebeu. Ou, pelo menos, dá
sinais disso.
Quando mais de metade dos inquiridos (53 por cento) entende que os
sacrifícios valem a pena "para manter as contas públicas equilibradas e a
dívida pública controlada" isso mostra que, mesmo face à falta de jeito do
Governo para apresentar as medidas mais duras, sobreleva a noção de que
não era possível continuar a dieta de engorda que representava o nosso
défice generoso. Mas há mais sinais de bom senso, quer na defesa de um
pacto entre os principais partidos sobre as finanças públicas, quer no
apoio à ideia de que deve haver alguma plurianualidade nos Orçamentos do
Estado.
A resposta mais surpreendente será contudo a que avalia a reforma da
legislação laboral. Não se formou uma maioria clara, mas contra a
expectativa que apontaria para um país ainda muito ligado à ideia da
segurança no emprego, surgiu-nos uma maioria relativa de respostas que
consideram que a flexibilização das leis laborais ficou aquém das
necessidades. Somando estas respostas às dos que consideram que essa
flexibilização ficou no ponto justo, temos metade dos inquiridos - isto
num estudo onde encontrámos mais gente a culpar o actual Governo pela
situação económica do que a atirar as culpas para o anterior. Tudo isto
num inquérito onde também se encontra o mesmo número de inquiridos a
defender a diminuição dos impostos sobre as empresas do que a defender
mais investimento público como forma de relançar a economia.
Surge-nos assim um retrato dos portugueses em que estes surgem mais
liberais e menos estatistas do que a imagem padronizada (até no debate
político). Portugueses que começam a interiorizarem a necessidade de rigor
nas contas públicas, mesmo a doer, rigor esse associado a uma fé crescente
no mercado - um mercado com leis laborais mais flexíveis e impostos mais
baixos sobre as empresas.
Num único ponto continuamos iguais a nós próprios: tememos os espanhóis.
Já não os exércitos dos Filipes, mas a invasão da Zara, do El Corte Inglês
ou da Repsol. Em tudo o resto a opinião pública parece em sintonia com
alguns dos pontos centrais da estratégia de desenvolvimento aprovada na
Cimeira de Lisboa do Conselho Europeu - então formado por uma larga
maioria de governos socialistas - e que apontava o caminho das reformas
económicas, da disciplina das contas públicas e da liberalização
competitiva como o caminho do crescimento e da riqueza. Enraizado,
naturalmente, em sociedades que fazem do conhecimento a alavanca do
progresso.
Nesse último ponto continuamos contudo bem longe da indispensável reforma
das mentalidades. Até porque, como ontem dizia neste jornal o
vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Nuno Crato, "os
estudantes habituaram-se a que seja socialmente aceitável não gostar e ser
mau a matemática". E isso é um tremendo sinal de atraso - como era um
sinal de atraso aceitar-se socialmente a pedofilia, como sucedia ainda há
poucos anos.
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