Público - 19 Fev 04

Ninguém Fica Igual
Por PEDRO STRECHT

Regressou a discussão sobre a despenalização do aborto. E, de novo, os argumentos a favor do sim e do não repetem-se, tal e qual como já os ouvíramos há uns tempos. Contudo, para muitos profissionais da área da saúde mental infantil e juvenil, continuam a existir factos sobre os quais quase ninguém pensa.

Desde há muitos anos que se fala sobre a importância dos primeiros anos de vida para a construção e estruturação do funcionamento psíquico, insistindo-se na qualidade de relação afectiva entre pais e filhos para o saudável equilíbrio individual e social das crianças e adolescentes. Foi já ,nos anos 50 do século passado que o inglês John Bowlby introduziu o termo vinculação, para tornar clara a existência de uma ligação afectiva que se esboça, logo após o nascimento, entre o bebé e a mãe, ou quem habitualmente dele cuida. Sobre esta teoria não passaram muitos anos para se perceber que da qualidade de vinculação dependeriam, entre outras coisas, a possibilidade de termos adultos mais ou menos saudáveis, equilibrados e adequados na relação consigo próprios e com os outros. Depois, outros nomes grandes da área da pedopsiquiatria e da psicologia infantil desenvolveram a ideia de que a forma como uma mãe se liga a uma criança e dela cuida depende das suas representações mentais internas e, portanto, em caso último, da forma como ela própria viveu a sua infância e a relação com os progenitores. Foi isso
que deu origem a diversas noções, hoje indiscutíveis, como a perpetuação transgeracional de problemas, em que, por exemplo, mães e pais não desejados e não investidos emocionalmente têm mais riscos de poder repetir esse mesmo padrão com os seus próprios filhos. Ou ainda, como outro exemplo tão bem demonstrado por estudos ecográficos, que os filhos de mães gravemente deprimidas são muito menos activos ainda dentro do período de gestação, como se eles próprios estivessem igualmente tristes e investissem pouco no que os cerca.

Por isso, hoje sabemos muito bem que a saúde mental de uma criança se inicia antes do seu nascimento, muitas vezes logo na forma como os futuros pais concebem, ou não, o desejo de ter uma criança. Claro que muitas gravidezes não são planeadas, o que não quer dizer que, depois, não possam vir a ser desejadas. Mas tudo se torna mais complicado quando nos pensamentos dos adultos não existe espaço psíquico para a criança que está para vir. Adultos ou adolescentes, pois a taxa de maternidade adolescente em Portugal é a segunda mais negativa da União Europeia, logo atrás do Reino Unido; mas, se contarmos apenas as situações de mães com idade inferior ou igual aos 16 anos, isto é, se olharmos para o grupo das adolescentes mais jovens, vamos em primeiro a contar do fim. Por exemplo, em 2000, tinham nascido cerca de 7000 bebés filhos de mães adolescentes; isto sem contar com outras gravidezes existentes mas que não foram levadas até ao fim, pois há muitos abortos que não são contabilizáveis por serem maioritariamente clandestinos.

Assim sendo, um bebé deveria ser fruto do desejo de duas pessoas de sexos diferentes, num projecto comum de expectativa positiva sobre o novo ser que há-de vir. É quase sempre assim quando tudo corre bem. Por oposição, muitos problemas graves iniciam-se pela ausência do desejo, da aceitação, ou da inexistência de um projecto comum. Ou então existe um ou mais destes pressupostos, mas assentam em projecções patológicas dos pais, como a mulher que deseja um filho para segurar uma relação, ou a adolescente que engravida para fugir aos maus tratos do pai, ou o homem que quer ser pai para reforçar perante os outros uma qualquer imagem de masculinidade. Só que em todas estas situações o que predomina é a solidão, a tristeza, o desespero, ou então, a zanga, a raiva, ou até mesmo o ódio. Estados emocionais que necessitariam compreensão, contenção e reparação, muito mais do que punição, ou absolvição, porque a linguagem jurídica é aqui, como noutros contextos, muito redutora da verdadeira expressão da vida humana e não abarca a complexidade de sentimentos que se vivem em cada um destes momentos. Talvez seja por isso que se diz que referendar ou não o aborto não é uma questão de consciência política, pois dizer sim ou não mexe com experiências íntimas de cada um, enquanto somatório da parte mais privada e inconsciente das nossas experiências de vida, organizadas no plano mental com anos e anos de vivências emocionais. E isso depende da maneira como cada um também viveu a sua infância e adolescência e a forma como tal moldou a vivência da sua sexualidade adulta.

Por isso, é inútil determo-nos na superficialidade de argumentos a favor de um ou de outro lado do debate, pois todos podem ser facilmente rebatíveis. Que o corpo é da mulher, pois uma futura criança nunca é obra exclusiva de uma só pessoa e é mais do que um apêndice ou um mero habitante intra-uterino. Ou que há vida desde que duas células se conjugam, pois uma criança, enquanto tal, ultrapassa a ideia de um somatório de células, tecidos ou órgãos.

No que deveríamos assentar, melhor, no que deveríamos concentrar esforços para que tudo não passasse de uma mera intenção, é que a gravidez deveria ser, acima de tudo, uma experiência emocionalmente gratificante para a mãe, o pai, e o futuro bebé. Mas isso implicaria muito mais do que se tem feito até agora em termos de políticas de educação, saúde e até mesmo de suporte social a quem mais necessita. Implicaria, por exemplo, evitar que o aborto fosse tristemente usado em muitos casos (na maioria das situações, mesmo) como forma de contracepção, onde o que predomina é a ignorância ou uma informação moralmente moldada por preconceitos absurdos. Que se falasse mais de sexualidade como algo integrado no plano dos afectos do que clivada deles, não tanto apresentada como disciplina sujeita a avaliação no sistema educativo, mas como tema a aprofundar na qualidade da relação entre as pessoas, o que é muito mais difícil. Ou ainda, que as expectativas com as quais se moldam a afirmação social masculina (desde as idades mais precoces dos rapazes) pudessem evoluir para um modelo muito mais participativo e de suporte à gravidez da mulher. Ou, por último, que mudássemos de alguns paradigmas da intervenção jurídica, ficando no ar a questão que se impõe no debate sobre o aborto: não é este um problema muito mais vasto do que querer ou não sentar no banco dos réus algumas mulheres? Não se trata de discutir mais do que a quem pertence um útero ou quem deseja ou não a morte de seres indefesos?

Acordaremos para formar sociedades melhores quando soubermos dar ao mal-estar, à solidão, à tristeza, enfim, numa só frase, à ausência de amor, um outro destino. Quando estivermos mais aptos a apoiar e a integrar do que a isolar ou excluir. Mais à vontade para compreender do que para punir. Mais activos em tudo aquilo que simboliza vida, sendo que vida não é apenas a ausência de uma morte física, porque há mortes psíquicas que não se contabilizam. Todos unidos em torno dos frágeis, dos que se sentem tão mal que preferem o horror de mais um sofrimento a seguir em frente, quando seguir não significa nada de bom para quem fica, pois muitas vezes, quando há um aborto, não morre apenas um futuro ser. Morrem quase sempre dois, por vezes três, pois quem fica não fica mais igual. E isto não é uma ou outra lei que muda.

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