É bom não esquecer que a história da Humanidade
está cheia de grandes civilizações que desapareceram
Recentemente o historiador e ensaísta britânico
Timothy Garton Ash interrogava-se sobre se não
teríamos vivido, no final do século XX, um daqueles
períodos em que uma civilização atinge o seu apogeu
e, depois, entra em declínio. Notava então que muito
do que hoje temos por adquirido - das liberdades
cívicas ao bem-estar material - não só não é ainda
um adquirido em boa parte do mundo como, por vezes,
as sociedades recuam, deixam de ter meios para se
reproduzir e perdem as suas referências morais e
culturais. A história da Humanidade está, de resto,
cheia de episódios de grandes civilizações que
desapareceram ou que foram seguidas por séculos de
apagamento e ignorância.
Este início de 2006, convém reconhecê-lo, não tem
sido muito auspicioso, tendo acentuado muitas
preocupações. À frente de todas está, sem dúvida, o
braço-de-ferro com o regime iraniano em torno do seu
programa nuclear e o presidente da AIEA, El-Baradei,
até já reconheceu em Davos que o sistema global de
monitorização da proliferação nuclear já entrou em
ruptura e não é eficaz. Para mais a retórica das
potências, mesmo o subir do tom de países como a
França ou a Alemanha, não é de molde a sossegar
ninguém, pois não se vislumbra como pode uma acção
militar solucionar o problema. Entretanto a vitória
do Hamas na Palestina, com uma votação que terá
surpreendido os próprios palestinianos, reforçou a
incerteza sobre o futuro de uma região que, semanas
antes, perdera como político um dos seus líderes
mais pragmáticos, audaciosos e, também,
carismáticos, Ariel Sharon.
Nestas duas frentes as cautelas europeias e
norte-americanas seguem a par com uma inquietação
que até já colocou em segundo plano as preocupações
com o Iraque, de onde até vêm sinais mais positivos,
mas ainda fracos. Todos têm a noção de estar a
atravessar um precipício precariamente equilibrados
sobre um fio de arame, todos sentem que a mais
pequena aragem pode ser perigosa. Ora a reacção
incendiária alimentada por todo o mundo islâmico
contra um conjunto de cartoons saídos num obscuro
jornal dinamarquês mostra até que ponto pode ser
verdadeira a alegoria de que o bater de asas de uma
borboleta em Pequim pode desencadear uma cadeia de
eventos capaz de terminar numa tempestade homérica a
derramar-se sobre Nova Iorque.
Estes casos, aqueles que mais atenção têm
concentrado, não devem contudo desviar as atenções
dos riscos de desestabilização noutras regiões do
planeta, desde uma América Latina onde os populismos
estão em crescendo até uma Rússia sequiosa de voltar
a mostrar o seu músculo de grande potência, passando
por regiões de África e da Ásia onde a própria noção
de Estado moderno está em crise aberta. Finalmente,
como se isso não chegasse, adensam-se as nuvens
sobre a sustentabilidade do crescimento económico,
quer por escassez de recursos naturais, quer devido
à existência de desequilíbrios preocupantes (nos
Estados Unidos) ou de estagnações prolongadas (na
Europa ou no Japão).
Uma convicção vai, porém, ganhando consistência: nos
próximos anos viveremos num mundo onde a China e a
Índia se afirmarão como grandes potências
económicas, onde continuará a haver uma só grande
potência militar, os Estados Unidos, onde o mundo
islâmico prosseguirá no desempenho do seu papel de
grande desestabilizador e de cujos radares a Europa
tende a desaparecer. Esse pode não ser o mundo do
anunciado "choque de civilizações", mas pode bem ser
um mundo onde muitos dos nossos valores
civilizacionais não mais se reconhecerão.
Pessimismo excessivo? Não, porque olhar um futuro
possível ajuda a evitá-lo. Mas só se houver vontade
de que tal aconteça e entendermos que temos carinho
e orgulho na mais bem sucedida das civilizações.