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Diário de Notícias -
6 Fev 06
Aonde é que isto vai
parar?
João César das
Neves
Perante os ataques actuais contra valores e hábitos básicos da vida social e
pessoal, muita gente olha com inquietação o futuro. Que mundo deixaremos aos
nossos filhos? Apesar das incertezas e angústias, a resposta é muito mais fácil
do que parece.
Vivemos, sem dúvida, num tempo estranho. Apregoa-se abertamente uma filosofia
geral de prazer, cobiça e egoísmo. O interesse, carreira, orgulho pessoais são
determinados por cada um arbitrariamente, na ilusão da felicidade e no desprezo
de deveres comunitários. Em nome dos direitos humanos, não só se toleram, mas
defendem-se com ardor coisas antes repudiadas, como divórcio, aborto,
homossexualidade, clonagem, eutanásia, "bancos de esperma", "barrigas de aluger".
Milenares instituições, como o casamento, adopção, herança, estão abertas à
discussão e a redefinições súbitas. O conceito de vida humana também se sujeita
a sufrágio e manipulações. Quem for contra isto é insultado e até levado a
tribunal. Em nome da liberdade destrói-se a mesma liberdade.
O processo parece imparável, sacrificando até os que nele se empenham. A luta
intensa pela mudança esquece a frase do girondino Vergniaud "A revolução, como
Saturno, devora os seus filhos." Cada geração rejeita os valores fundamentais da
anterior, para depois se ver sob o fogo dos ataques da seguinte. Os que hoje se
indignam com posições que julgam retrógradas, devem preparar-se, como os seus
pais, para o desprezo que o amanhã trará sobre o que julgam essencial. Onde é
que isto vai parar?
O quadro não é novo. Aliás, é a terceira vez que se repete. Verifica-se hoje um
ataque global e profundo contra os valores da família. Considerada decadente e
obsoleta, é repudiada face a outras relações. Mas esta campanha actual é igual a
três anteriores. Há 50 anos o inimigo era a empresa e o mercado; há 200, a
monarquia e a nobreza; há 500, o papa e o clero. Cada uma das revoluções -
religiosa, política e económica - seguiu caminhos paralelos. Isso ajuda a
antecipar o que aí vem.
A Reforma protestante foi o tiro de partida da Era Moderna. Pretendia, com
razão, uma fé mais aberta e robusta. Os resultados foram profundos. O propósito
dos reformistas era promover o fervor e espiritualidade, atacando o papa e o
clero. Mas hoje é nas zonas reformadas, como Suécia, Grã- -Bretanha e Suíça, que
a religião está mais morna e adormecida. Pelo seu lado, o papado não só
sobreviveu, mas reformou-se e fortaleceu-se com os ataques, e os católicos
globalizaram-se pelo mundo.
A Revolução Francesa foi o culminar de um vasto repúdio do "Antigo Regime",
monarquia e nobreza. Ninguém hoje discute a justeza da rejeição de privilégios e
aristocracias. Mas classes sociais e Governo forte permanecem condições do país
saudável. E a questão do rei, afinal, não é assim tão importante. Os resultados
foram muito diferentes do que pretendia a espiral imparável. Enquanto a
Inglaterra, que manteve o monarca, tem um regime secularmente estável, as
regiões onde mais ardeu a revolução são os sistemas falhados. A França, com
cinco repúblicas, dois impérios e várias restaurações, é o caso mais evidente,
mas análogo à confusa Itália ou à Alemanha dos dois reichs e das duas
Alemanhas.
No campo económico, o falhanço dos revolucionários foi mais rápido e evidente. O
capitalismo, horror dos nossos avós, prosperou e afirmou-se, enquanto a Rússia,
paraíso radical por 70 anos, ainda busca o equilíbrio produtivo.
Todas estas revoluções trouxeram grandes ganhos, mas no meio de muitas vítimas.
A quarta caiu nos nossos dias. Perante os múltiplos ataques, parece que a
família vai soçobrar e desaparecer. Mas a experiência dos processos anteriores
ajuda-nos a prever o movimento.
O seu propósito é fácil de descrever. Ao rejeitar-se a tradição e cultura
europeias e aqueles valores em que edificámos a nossa sociedade, quer-se
retornar à situação anterior, a da cultura pagã. O neopaganismo que nos rodeia,
adorando os antigos deuses - sexo, vinho, poder, dinheiro, fama -, é disso prova
evidente. Tal como os ideólogos do Iluminismo, são os axiomas da civilização
clássica, decadente e hedonista, que fascinam os movimentos antifamília. Como
nas reformas anteriores, o resultado será muito diferente do modelo apregoado.
Não restam dúvidas de que haverá muitas vítimas nesta luta. Os que mais radicais
forem, mais dificuldade terão em ganhar o futuro. Mas a família vai sobreviver,
e até beneficiar, com a pressão dos inimigos.
Professor
universitário
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