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Diário de Notícias -
13
Fev 06
O tempo em que o
mundo ficou muito perigoso
João César das Neves
Omundo está a ficar muito perigoso. Quando daqui a uns séculos escreverem a
História da nossa era, estes anos serão certamente vistos como o momento
decisivo, em que a guerra deixa de ser abominável para se tornar discutível. É
este o tempo em que "Hitler" passa de nome recordado para acusação dirigida a
outros. É agora que o mundo volta a ser muito perigoso. O pano de fundo é ainda,
naturalmente, a maior catástrofe de sempre, a Segunda Guerra Mundial. Essa
carnificina bárbara, tão bárbara como só uma civilização avançada pode ser,
parecia ter mudado para sempre a nossa atitude. Pela primeira vez na História, a
Humanidade tinha poder para destruir a Humanidade. Só havia uma resposta
possível "Guerra nunca mais!" Esta era a certeza que todos professavam. O mundo
mudara.
Mas essa mudança começou a mudar, naturalmente, no fim da Guerra Fria, o mais
estúpido de todos os conflitos uma guerra que não chegava a ser guerra, porque
não podia ser guerra. Quando acabou, o frio foi aquecendo: afinal, a guerra
podia ser. Os primeiros embates após a queda do Muro ainda eram escaramuças à
antiga: guerras coloniais, como o Iraque em 1991 e a Somália em 1993, ou guerras
civis, como a arrastada destruição da Jugoslávia e a recorrente "intifada" na
Terra Santa. Não eram menos sangrentas e horrorosas, mas não traziam perigo
global. "Guerra mundial nunca mais!"
O segundo passo na mudança foi, naturalmente, o 11 de Setembro de 2001. Não
tanto o terrível atentado em si, mas a reacção. Reapareceram então as invasões
por vingança, disfarçadas de "guerra preventiva". O Iraque em 2003, como o
Afeganistão em 2001, são intervenções muito diferentes das da década anterior.
A América, ferida, assume então o papel que os seus inimigos há muito lhe
atribuíam, reforçando a legitimidade dos opositores. A democracia elege
terroristas do Hamas. O Irão, rodeado pelo nuclear por todos os lados menos por
um, também quer ser nuclear. Na América Latina enfurecem os "Fidel Castro de
terceira geração". Perante a raiva americana, outras potências, da patética
Europa à ameaçadora China, querem assumir-se como árbitros imparciais. Começa a
falar-se de "choque das civilizações". O mundo volta a ser muito perigoso
"Guerra mundial, talvez!"
O problema principal é este acumular de pólvora, que paulatinamente se vai
espalhando pelo planeta. O que nunca podemos esquecer é que a pólvora é a única
coisa que é possível controlar. As faúlhas vão sempre aparecer, porque nunca
faltam os fanáticos, religiosos ou laicos. A principal diferença entre fanáticos
é que os religiosos são desequilibrados mas fiéis à sua fé, enquanto os laicos
violam o seu próprio dogma de tolerância. Estes, para quem a liberdade é mais
sagrada que Deus, estão dispostos a incendiar o mundo pelo direito à caricatura.
Num tempo que deixou de ouvir a razão, a defesa mais eficaz é... o comércio. O
mundo económico da Guerra Fria, que só podia ser comercial porque "Guerra nunca
mais!", deixou excelentes resultados de prosperidade em todo o lado, mesmo nas
zonas mais desgraçadas. Esse progresso é uma garantia adicional para a paz, pois
os comerciantes são os que mais detestam a violência, que começa sempre por lhes
partir as montras. No entanto, o progresso económico também traz dois outros
elementos.
Primeiro, não sobem apenas as riquezas, mas também as expectativas. Em breve, o
muito que se consegue parece pouco face ao que ainda falta. Segundo, no meio da
turbulência da ascensão, geram-se sempre divergências. O mundo, todo o mundo, é
muito mais rico do que era em 1945, mas a disparidade também aumentou. O nível
de vida (PIB per capita) quase triplicou nestes 60 anos em média mundial.
Mas a África subsariana aumentou o seu valor em 50%, mais que em qualquer época
anterior, e a América Latina 230%. Entretanto, os EUA subiram 2,5 vezes, a
Europa 4, o Japão cresceu 11 vezes, a China 6 e o resto da Ásia Oriental uns
impressionantes 19. Isto significa que, tendo todos melhorado, aumentou bastante
a distância entre a região mais rica (sempre os EUA) e a mais pobre (que em 1950
era a China e hoje é a África).
Apesar disso, o comércio continua a ser a melhor esperança para a paz. Porque,
mesmo na raiva, a maioria do mundo sabe que tem bastante a perder com uma
renovação da catástrofe de 1939-45, que hoje seria muito pior. Pode odiar ou
invejar os outros, mas não deixa de viver muito mais confortável que seus pais.
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