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Público - 15 Fev 06
A falar é que...
Joaquim Fidalgo Crer para Ver
Sempre achei bastante palerma aquela máxima do "gostos não se discutem". Por que
não?... Se eu gosto do vermelho e tu gostas do vermelho, confessamos as nossas
preferências, vemos que estamos de acordo e calamo-nos, pois nada há a discutir
sobre isso. Não temos conversa. Mas se eu gosto do vermelho e tu gostas do azul,
ficamos cada qual com a sua e vamos embora sem que, ao menos, eu tente
explicar-te por que prefiro o vermelho e tente perceber por que preferes tu o
azul? Eu digo que gosto do vermelho "porque sim", tu que gostas do azul "porque
sim", e nenhum de nós tem a ver com isso, e calamo-nos sem discussão, sem troca?
Que graça tem?... Os gostos não são irracionais nem imutáveis - como as pessoas,
aliás, e ainda bem. A gente vive, reflecte, aprende, muda. As melhores
discussões que temos não são, precisamente, aquelas que nos mostram como as
escolhas do outro e os seus argumentos me confrontam com as minhas próprias
opções e gostos, me põem a pensar, a contrapor, a reavaliar, quem sabe até a
alterar as minhas posições e... gostos?
Discutir os gostos do outro não é desconsiderá-lo - pelo contrário, é
valorizá-lo, é querer entendê-lo, é abrir um debate que, depois de aberto, pode
levar a muitas novas conclusões, do outro ou de mim próprio. Tentar convencer o
outro de que o meu gosto é mais "gostoso" também não tem nada de mal, desde que
eu o faça com argumentos e diálogo, num processo que me leva a ouvir também o
que ele tem para me dizer dos seus próprios gostos. Não é isto viver em
sociedade, ser livre e praticar a liberdade - mas uma liberdade activa, crítica,
empenhada, algo mais do que "cada um é como é e tem todo o direito, e eu não me
meto porque não tenho nada a ver com isso"?
Por exemplo: a Google gosta de ganhar dinheiro e a China gosta de cercear a
liberdade dos cidadãos. A Google quer instalar-se nos computadores de quase 100
milhões de chineses, mas o Governo da China só deixa se a Google impedir o
acesso daqueles "navegadores" a uma série de domínios considerados subversivos,
coisas como "democracia", "direitos humanos", etc. Enfim, gostos. E a Google não
discute os gostos da China, e aceita fazer essa autocensura, recebendo como
contrapartida a licença para se instalar num mercado enorme e ganhar rios de
dinheiros - um gosto que, naturalmente, a China também não discute. (Claro que,
se for nos Estados Unidos e o Governo americano instar a Google a fornecer dados
de consultas com vista a lutar contra a pornografia infantil na Net, a Google
recusa-se, em nome da liberdade e do direito dos cidadãos à privacidade, e não
há ninguém que possa obrigá-la. Mas se calhar esta dualidade de comportamentos
decorre apenas do gosto da Google de ganhar dinheiro de todos os modos - e esse
gosto não se discute...).
Falo da Google só como (mais) um exemplo. Porque é da história dos cartoons que,
afinal, estou a falar. Do direito de todos a discutir, sem com isso ofender, os
"gostos" do outro. E discuti-los mesmo quando dava mais jeito (ou mais lucro)
ficar calado. Jornalista
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