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Público - 24 Jan 03
A CASA ENCANTADA
Toda a Gente Todo o Tempo
Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Quem conta a história desse dia 22 de Janeiro aos que não estiveram lá (na
conferência internacional "Televisão, violência e sociedade")? Quem cria a
cultura? Os que estivemos lá, ou os que querem criar esse dia como um dia
nulo, clone de um dia que se não houvesse passado?
1 - Eu sonhei ou anteontem, dia 22 de Janeiro, participei, com algumas centenas
de pessoas, numa conferência internacional intitulada "Televisão, violência e
sociedade"? Eu sonhei ou essa conferência se realizou na mais prestigiada
universidade privada portuguesa, a Universidade Católica? Eu sonhei ou essa
conferência foi o resultado do trabalho de muitos meses, por sugestão,
iniciativa e total empenhamento de Maria Barroso e organização e absoluto apoio
de Manuel Braga da Cruz, reitor da Católica? Eu sonhei ou nessa conferência
intervieram especialistas muito conhecidos, americanos, ingleses e espanhóis? Eu
sonhei ou nela foram conferentes, moderadores ou comentadores alguns nomes
ilustres, de que me limito a citar os dois que o são mais: Manoel de Oliveira e
Eduardo Lourenço? Eu sonhei ou, para presidir e falar na sessão inaugural, se
deslocou expressamente a Lisboa, a convite de Maria Barroso, a Rainha de
Espanha?
Durante o dia tive a certeza de estar bem acordado. Felizmente acordado para uma
iniciativa que ultrapassou as melhores expectativas, quer pela enorme qualidade
de algumas intervenções, quer pela participação de uma sala cheia (o Auditório
Cardeal Madeiros). Mas, à noite, vendo os vários canais televisivos (salvo erro
ou omissão) receei ter sonhado. Tudo o que vi foi uma sala quase vazia, onde a
vedeta era o ministro da Presidência, que foi presidir à sessão final, mas, se
falou aos jornalistas (sobre outros casos), não falou nela. Qualquer semelhança
entre o que vi com os meus olhos "no real" (Universidade) e "no tempo real" (das
9 e meia da manhã às 8 da noite) e o que vi com os mesmos olhos "no virtual" (em
minha casa, na televisão) e "no tempo virtual" (minuto, minuto e meio) foi pura
coincidência. Rainha de Espanha, Maria Barroso, Braga da Cruz, Manoel de
Oliveira, Eduardo Lourenço (para me ficar pelos já citados) ou nem foram
referidos ou seriam descortinados na plateia por olhar mais arguto. Eram
(éramos) todos fantasmas de um velório qualquer, eventualmente convocado por
Morais Sarmento para discutir o Bombástico ou o Eu Confesso. Durante todo o dia
nem se falou nesses "casos"? Inteiramente verdade. Mas a verdade já nem sequer é
o que parece. É o que aparece. E o que apareceu foi isso. Apenas isso.
2 - Só alguém extremamente ingénuo ou extremamente distraído, pode acreditar que
esse "off" aconteceu por acaso ou porque os programadores acharam a conferência
coisa mui pouco mediática. Qualquer pessoa que não seja nem uma coisa nem outra,
sabe o que seria o frenesim se a Rainha Sofia viesse assistir a um desfile de
modas. O frenesim até existiu quando a Rainha chegou, quando entrou na sala,
quando falou. Mas precisamente por ter existido é que se achou que não devia ser
mostrado.
Ninguém estava ali para diabolizar a televisão, como sublinhou a horas tantas
Emídio Rangel. Ninguém estava ali para a canonizar, embora alguns, como Lopes
Araújo, dissessem amá-la muito, ou outros, como Pedro Norton de Matos, se
referissem ao incómodo do discurso "antitelevisivo". Todos estavam ali para a
discutir. Mas será que a televisão se pode discutir? Há mais de dez anos, Karl
Popper alertou para esse estatuto singularíssimo, em obra que muitos atribuíram
a suposta senilidade. Vejam. No dia 22, eu aprendi muito. Com o que vi, com o
que ouvi, com o que não vi, com o que não ouvi. E, como recordou Eduardo
Lourenço na sua espantosa intervenção, todos somos candidatos a Ricardo III: O
nosso reino por um minuto de celebridade televisiva. A única celebridade que
conta, ou que faz de conta, como em tempos disse Andy Warhol, também citado por
Eduardo Lourenço.
Ele ainda citou Pessanha: "Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos,
porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para
nunca mais!" À noite, lembrei-me do resto do poema. E, na elipse, ou no eclipse,
senti esse "vago medo angustioso" e pensei na pergunta: "Sem vós o que são os
meus olhos abertos?" Fantasmas de Orwell, fantasmas do Fahrenheit, fantasmas de
Carpenter ("They Live"). Exagero? Por enquanto. Mas o cheiro que cheiro aqui já
não cheira nada bem.
3 - A propósito do controverso tema da influência da televisão em comportamentos
violentos, ou no aumento da violência, a inglesa Julia Firmstone, investigadora
em Leeds, lembrou, com pertinência, que muito e muito antes de haver televisão
ou de se pensar nela, crimes horríveis foram cometidos e que nada prova que
fossem menos ou mais dos que hoje se atribuem aos malefícios dela.
Já conhecia o argumento, mas nunca me pareceu que ele tocasse o cerne do
problema, que não reside numa relação de causa a efeito, mas numa relação
sintomática. A fórmula precisa, que eu próprio nunca havia encontrado, foi-me
dada, algumas horas depois, na luminosa intervenção de David Walsh, professor da
Universidade do Minnesota. "O real impacto da violência na televisão não se
traduz no acréscimo de comportamentos violentos, mas na criação de uma cultura
do desrespeito ('creates the culture of disrespect')."
Assim, isolada do contexto, a fórmula pode parecer moralista, até porque não tem
a mesma carga que "respeito" ou "desrespeito". Mas, para David Walsh, ela é o
corolário de uma afirmação capital, em que eu acredito tanto quanto ele: "Whoever
tells the stories, defines the culture" ("Quem conta o conto, define a
cultura"). Durante milénios, de Homero até à minha geração, essa foi a verdade,
num tempo histórico em que a cultura era do tempo, a cultura do "era uma vez".
Está a deixar de o ser. Porque o contador de histórias, o "criador da cultura",
já não é mais o poeta, o bardo, o cronista, o ficcionista ou o historiador. "O
que é novo" - disse Walsh - é que, desde 1950, delegámos na televisão,
crescentemente, o poder de contar a história e as histórias. Muitos, hoje, sabem
mais sobre personagens e heróis da televisão que sabem sobre os seus vizinhos.
Como observava um dos
personagens do "cartoon" Calvin and Hobbes. "Cada vez sabemos mais sobre
acontecimentos que nunca aconteceram e pessoas que nunca existiram."
Pouco antes, tinha recordado o que o célebre escritor E. B. White apontara em
1929, quando assistiu, na exposição de Chicago, a uma das primeiras
demonstrações do novo invento. "Estou convencido de que a televisão vai ser o
teste do mundo." "An unbearable disturbance of the general peace or a saving
radiance in the sky. We shall stand or fall by television."
Voltando ao dia 22: quem conta a história desse dia aos que não estiveram lá?
Quem cria a cultura? Os que estivemos lá, ou os que querem criar esse dia como
um dia nulo, clone de um dia que se não houvesse passado?
4 - Tanto barulho por causa de um colóquio, que teria sempre difusão restrita,
podem pensar alguns dos que me lêem, não percebendo tom tão grave.
Mas não foi um incidente. Foi um sinal. Um sinal poderosíssimo, pois que, como
também disse David Walsh, a televisão não é boa ou má, é poderosa.
Nesta mesma semana, poucos dias antes, vi um filme soviético ("O Grande
Cidadão", de Friedrich Ermler) que Estaline mandou fazer em 1938 à glória dos
processos de Moscovo. O herói é o famigerado Kirov, assassinado em 1934. A morte
dele foi o pretexto para os processos.
A certa altura do filme - num dos passos mais demenciais dele - Kirov falando
dos "inimigos" (trotskistas e outros) vai ao ponto de parafrasear Lincoln:
"Pode-se enganar toda a vida um bom comunista. Mas não se engana para sempre um
milhão de comunistas." A citação acabou por virar-se contra Estaline e contra os
sucessores.
Mas será sempre verdade que "ninguém engana toda a gente todo o tempo?". Ou a
televisão terá o poder - ou já o tem - de reduzir o credo lincolniano a mais uma
frase feita, ou como hoje se diz, a um conteúdo? Um "conteúdo" sem frase nem
fraseador. Um vazio.
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