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Diário de Notícias - 28 Jan 03
Demissão
Francisco Sarsfield Cabral
As décadas de censura que sofremos até ao 25 de Abril deixaram uma pesada
herança de equívocos. Qualquer um a quem não seja permitido escrever num jornal
tudo o que lhe apetecer vem bramar contra a nova censura. O
espantalho da censura é invocado quando surge a menor hipótese de colocar
limites ao vale-tudo para captar audiências na televisão. Na Internet é a
bandalheira, como mostra Clara Ferreira Alves a propósito de um site sinistro
(Diário Digital do dia 21). Falando do espectáculo do crime para exibição
pública e «voyeurística», escreve Clara: «Nestas coisas sou a favor,
inteiramente, da censura. Mais, da sanção e da punição».
Eu não lhe chamaria censura, mas respeito pela lei. Por exemplo, pelo art.º 21.º
da Lei da TV, que proíbe programas que atentem contra a dignidade da pessoa
humana. Mas os políticos têm medo das televisões, das quais julgam (erradamente)
depender o voto dos eleitores. Por isso tem o Estado assistido passivamente à
abjecção crescente de alguns programas televisivos em sinal aberto. Não faltará
muito para vermos no pequeno ecrã violações em directo ou até alguns
assassinatos. Programas de audiência garantida, como era a queima pública dos
hereges pela Inquisição. E, dirão os senhores da TV, seria antidemocrático ir
contra os gostos da maioria...
Perante a nova vaga de reality shows, o Governo apelou à Alta Autoridade para a
Comunicação Social, cuja incapacidade para assegurar um mínimo de ética na
televisão tem sido notória. Talvez sejam precisas novas entidades e novas
regras. Mas o que mais falta ao Estado é coragem para deixar de se demitir. Sem
ela, a polémica serve apenas para aumentar as audiências dos programas em causa,
deixando felizes as televisões.
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