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Público - 25 Jan 03
Os Ecrãs do Inferno
Por NUNO PACHECO
Os que sugerem medidas censórias para o telelixo erram o alvo. Para tudo, até
para isto, há leis e tribunais e multas. Pesadas, se for o caso
"Em democracia nada justifica a tese de um director de cadeia de televisão, para
quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos
princípios da democracia, 'porque é o que as pessoas esperam'. Nestas
circunstâncias só nos resta ir para o inferno." Isto mesmo escrevia Karl Popper
no livro "Televisão: um Perigo para a Democracia" (editado entre nós pela
Gradiva em 1995). Mesmo os que habitualmente se indignam com o excesso de
telelixo que amiúde nos invade concordarão que as teses de Popper sobre esse
"media" sem o qual já não sabemos viver, a televisão, sempre se pautaram por um
excessivo pessimismo e por uma posição tão determinista quanto conservadora.
Mas numa coisa estará Popper certo: o inferno é o nosso destino. E o que é o
inferno, em democracia? É a perda absoluta de identidade, a descrença
irredimível nas instituições, a transformação dos instintos mais primários em
regra social, o primado do "circo" sobre a justiça. De nada vale, cadavez que
surge um programa de baixíssimo nível (como muitos a que temos continuamente
assistido), apelar ao bom senso dos responsáveis pelos canais de televisão,
porque o caminho por eles escolhido (o do aumento das audiências a qualquer
preço) conduz necessariamente aos infernos de que fala Popper. Mas importa
definir quais os limites admissíveis a tais programas, quando o que está em
causa é a própria democracia. Porquê? Porque a ilusão de democracia criada pela
televisão (a de que os intervenientes nos programas referidos se substituem aos
tribunais, aos advogados, aos partidos) é uma ilusão com o único fito de
proporcionar um espectáculo indecoroso a troco de dinheiro. De audiências, logo
de dinheiro. Não está em causa uma injustiça praticada, um crime não desvendado,
um cidadão que tudo tentou para obter do Estado aquilo a que tinha direito e foi
trucidado pelas malhas da burocracia; disso cuida o jornalismo, o televisivo
inclusive, como bem lhe compete; trata-se, isso sim, de vender misérias alheias
a troco de fortunas. De rentabilizar o insólito pela degradação do gosto, de
sugerir que uma gritaria alarve é mais justa e popular do que uma decisão, por
falha que seja, de qualquer das instituições que sustentamos com os nossos
impostos. Trata-se, no fim de contas, de uma fraude pública destinada unicamente
a lucro fácil.
Quem perde, a prazo, com tais indecorosas farsas? O Estado, porque fragiliza os
seus próprios fundamentos (quem se interessa pela justiça dos tribunais quando a
televisão oferece a "verdadeira" justiça?); a sociedade, porque as instituições
que funcionam mal deixarão de ser postas em causa no lugar e no momento certos
(a televisão lá está, para "resolver" tudo); e o sistema democrático, porque
todas as suas regras (a representação pelo voto, a delegação nos representantes
eleitos) deixam de fazer sentido. Os que sugerem medidas censórias erram o alvo.
Para tudo, até para isto, há leis e tribunais e multas. Pesadas, se for esse o
caso. Assim haja regras.
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