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Público - 9 Jan 2003
Um Ministro Competente e Discreto
Por MARIA FILOMENA MÓNICA
destaque: David Justino tem-se preocupado, de forma digna, em mudar aquilo que
pode ser mudado. Nunca o ouvi queixar-se da herança que os "cientistas da
educação" lhe legaram, nem dos compromissos dos anteriores governos
Entre meninos abusados sexualmente e lavagens de dinheiro no futebol, não
arranjámos tempo para reparar que nem tudo vai mal em Portugal. Por muito que o
facto surpreenda alguns - incluindo eu própria - quero louvar o ministro da
Educação. Depois de anos de política desastrosa no sector (cuja responsabilidade
cabe, em partes idênticas, ao PS e ao PSD), eis que, do céu de Oeiras, surgiu um
dirigente sensato, inteligente e calmo.
As complicações, os disparates e as cumplicidades existentes no interior do
mundo da educação básica e secundária são tais que nem ao meu maior inimigo
desejaria a pasta. Contudo, David Justino tem-se preocupado, de forma digna, em
mudar aquilo que pode ser mudado. Nunca o ouvi queixar-se da herança que os
"cientistas da educação" lhe legaram, nem dos compromissos dos anteriores
governos. Olha as escolas com um zelo reformista que só lhe fica bem.
É verdade que nem tudo o que anunciou me agrada. Não gosto da ideia demagógica
de, num país com um abandono escolar elevadíssimo, se anunciar o alargamento, de
uma penada, da escolaridade obrigatória para doze anos. Como me choca a ideia -
embora perceba que ela deriva do facto de os manuais já estarem feitos - de, nas
disciplinas de Língua e Literatura Portuguesas, em vez de aos clássicos, ser
dado o lugar de honra a autores cujo estatuto está longe de uma perenidade
assegurada. Mas, ao lado disto, há muitas medidas positivas. Destaco o novo
calendário do pré-escolar, o encerramento das escolas com menos de 11 alunos, a
proposta de alteração da revisão curricular para o secundário, a promulgação de
um estatuto disciplinar que tornará possível punir rapidamente os alunos
insubordinados e o esquema de avaliação do ensino não superior.
De entre todas, a medida que mais me alegrou diz respeito à gestão escolar. No
princípio de Dezembro, em artigo publicado no "Diário Económico" e, no "Diário
de Notícias" de 5 de Janeiro, o ministro anunciava que a gestão das escolas
passaria a ser feita, mediante um concurso público, a que tanto docentes como
não docentes poderiam concorrer. Envolvendo 9500 escolas, não é uma questão
menor. A Fenprof já se manifestou contra, argumentando que se estava a subverter
a situação dentro das escolas. Ainda bem. Porque aquilo que as escolas precisam
como de pão para a boca é exactamente de subversão, ou seja, de uma autoridade
forte, autónoma e responsável. Antes de entrar no debate, fui ao meu dicionário
ver o significado exacto do termo "autoridade". Sob ele, escondem-se duas
concepções diversas. "Autoridade é o poder de mandar", diz-se, acrescentando-se
uma frase de Camilo: "Entrou no escritório do administrador, chamou de parte a
autoridade e contou-lhe o ocorrido." Vem, depois, um segundo significado:
"Crédito, importância, valia." E o dicionário cita outra frase. "Um conselho lhe
daria se tivesse autoridade." Para que uma autoridade seja legítima, isto é,
para que seja vista como merecida por aqueles sobre quem ela recai, ao primeiro
significado - o mando - tem de acrescentar-se o segundo - o da competência. O
indivíduo que obedece deve fazê-lo, não por ter medo de represálias, mas por
considerar que quem lhe deu a ordem sabe o que está a fazer.
Sob este aspecto, o termo "autoridade" nada tem a ver com democracia. Trata-se
de um tipo de autoridade de raiz meritocrática, conferida em virtude de um saber
específico. Depois da revolução de 1974, surgiu a ideia que toda e qualquer
autoridade, incluindo a escolar, deveria estar sujeita aos métodos da democracia
parlamentar. Isto é absurdo. O que não obsta a que muita gente, sobretudo entre
os docentes, continue a pensar assim.
Não é difícil perceber os motivos que, após 1974, levaram os portugueses a
resistir à ideia da existência de autoridades legítimas: quem, durante anos,
lhes dera ordens eram, não os melhores, mas os piores. Mas obedecer a um
indivíduo a quem reconhecemos autoridade não significa necessariamente que
gostemos dele, mas apenas que, no seu campo, o consideramos competente. De cada
vez que vou a uma consulta, estou a reconhecer, no médico, autoridade para me
tratar. Por isso lhe obedeço, mesmo quando me diz coisas desagradáveis.
Da mesma forma, é necessário que, nas instituições escolares, se instalem
chefias competentes. Sei que não vai ser fácil. Numa sociedade, onde às antigas
lealdades sociais se acrescentou o compadrio partidário, teremos de procurar que
a autoridade tenha a sua raiz, não em arranjos obscuros, mas no mérito. Sei, até
porque já participei em dezenas de júris, quão falíveis são os concursos na
selecção dos melhores. De qualquer maneira, são melhores do que a alternativa
vigente, a eleição. Porque o sufrágio torna o presidente do conselho directivo
refém dos colegas.
As instituições respeitadas vivem, em grande medida, de quem as comanda, do
rosto que as simboliza, da marca que uma personalidade lhes imprime. O instituto
onde trabalho é como é porque foi feito pelo professor Sedas Nunes. Um bom
director é capaz de dinamizar uma má instituição, um mau director de dar cabo da
melhor organização. O elemento pessoal é importante, como Muriel Spark o
demonstrou genialmente no seu "The Prime of Miss Brodie". Por favor, não me
venham dizer que uma escola não pode funcionar em moldes democráticos por o
director, em vez de ser eleito, ser nomeado. A liberdade de associação dos
corpos que fazem parte da instituição está garantida pela Constituição. É isso,
aliás, que distingue o mundo em que vivemos do regime sob o qual nasci.
Finalmente, sugiro ao ministro que, nas nomeações a fazer, tenha em conta que os
melhores surgirão, não de entre os diplomados pelas escolas de gestão, nem pelos
centros de investigação pedagógica, mas de entre os professores devotados ao
serviço público, uma qualidade perdida na anima contemporânea. Prevejo
tempestades, mas David Justino não pode esmorecer. Até porque as vítimas são os
filhos dos pobres, que não têm outro recurso que não seja frequentar o sistema
de ensino estatal.
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