|
Público - 9 Jan 03
A Estupidez da Praxe
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
destaque: Rito de passagem? Mas que passagem? A única coisa que os estudantes
transportam do liceu para a universidade é a sua carga de ignorância. A cultura
juvenil revê-se num mundo de grosseria e ignorância
Se existisse uma colecção de retratos do nosso atraso, a cena da praxe
ocorrida em Macedo de Cavaleiros era um deles. Saliente-se, aliás, que é apenas
uma cena entre muitas que se repetem por todo o país de Braga a Faro e que
esporadicamente são noticiadas, quando há uns estudantes corajosos que as
denunciam, ou quando o abuso é intolerável e provoca danos. Ninguém, muito menos
o ministério, nem os responsáveis pelas escolas, pode alegar desconhecimento.
Parece que entre as cenas habituais das praxes aos caloiros, a julgar pela de
Macedo de Cavaleiros, existe a prática de pôr os rapazes e as raparigas a
quatro, feitos asno, cabra ou carneiro, mais ou menos vestidos, mas, pelo menos
neste caso, com a roupa interior por fora, a ter que dizer umas obscenidades e a
responder a umas perguntinhas perversas. Conhecem-se mil e uma variantes, todas
boçais, destas práticas.
Desta vez, mais uma vez, a brincadeira correu torta, porque a rapariga seviciada
resolveu e bem queixar-se. O mais espantoso foi ver alguns estudantes,
dirigentes académicos locais, a justificar o que se tinha passado -
provavelmente já tinham estado numa idêntica postura a quatro a fazer de
carneiros a balir e gostaram da experiência - e a dividir o mundo entre os a
favor da praxe e "antipraxe". Sugeriam que alguém poderia evitar as cenas de
humilhação sado-eróticas, com que se entretêm, proclamando-se "antipraxe", o que
teria a penalização de serem excluídos das "actividades académicas". Gostaria de
saber se dinheiros das instituições universitárias, que vem dos nossos impostos,
podem ser canalizados para grupos de estudantes que excluem das actividades
financiadas que patrocinam os que se recusam a fazer tristes figuras de asno.
Rito de passagem? Mas que passagem? Cada vez mais a única coisa que os
estudantes transportam do liceu para a universidade é a sua carga de ignorância.
A cultura juvenil revê-se no Quim Barreiros, nas peripécias futebolísticas e no
Big Brother, num mundo de grosseria e ignorância em que ler alguma coisa mais do
que os jornais desportivos ou a "Caras" é excepcionalíssimo. Aliás, a praxe e as
claques futebolísticas partilham muita coisa em comum - a violência latente, o
culto pela obscenidade, a demarcação clubística entre "nós" e "eles".
Tenho para mim que um dos sinais de degradação do ensino universitário nos
últimos anos foi a progressiva introdução da praxe. Subitamente, após uma sadia
desaparição da praxe nos anos 70, começou-se de novo a ver rapazes e raparigas
vestidos de uma imitação de padres de gravata, o chamado "traje académico". Em
muitos sítios onde este nunca fora "tradição", inventaram-se novos "trajes",
todos eles ridículos e um pouco à moda dos bobos da corte das imagens medievais.
Só lhes faltava pôr uns sininhos para parecerem o "coringa" dos baralhos de
cartas.
A praxe acompanhou a progressiva perda de qualidade do ensino básico e
secundário, a crescente diminuição da importância da leitura e da oralidade
consistente no ensino, a substituição de critérios de exigência e qualidade pelo
mito do ensino "sedutor", em que as crianças "bons selvagens" se tornavam "bons"
e menos "selvagens", por uma escola amável e onde não era preciso o esforço. A
praxe mostra que um dos resultados finais da ideia da escola "soft", das
pedagogias não directivas, foi mais o despertar do "selvagem" do que do "bom",
para desgosto de Rosseau.
A praxe estudantil foi sempre uma marca da mais provinciana universidade
portuguesa - Coimbra - e dificilmente se implantou nas universidades de Lisboa e
Porto, onde a população estudantil vivia em verdadeiras cidades, com vida
própria fora do fechado mundo estudantil. Em Coimbra, uma cidade em grande parte
dependente dos estudantes, dominada pela universidade, povoada por uma multidão
de gente vinda do interior que aí habitava, vivendo em quartos e casas alugadas,
o mundo do Palito Métrico floresceu. Os estudantes praxistas eram activos
participantes da boémia da cidade e cultivavam uma cultura de estúrdia e do
vinho, sob a suprema autoridade do estudante mais cábula, o "dux veteranorum",
que obtinha o lugar na exacta proporção ao número de chumbos que tinha nos
exames e aos anos que demorava a acabar o curso.
A crise de 1969 provocou uma rara união entre os praxistas e os estudantes mais
politizados, com o "dux" a apoiar a greve e com a suspensão da praxe pelo "luto
académico". Este acto acabou por muitos anos com a praxe em Coimbra e varreu-a
das universidades onde era claramente uma importação euma imitação - Lisboa e
Porto. No Porto, tenho no meu currículo de dirigente estudantil ter ajudado
activamente a acabar com a ridícula parafernália dos "grelados" e "fitados", com
as cartolas e penduricalhos que passeavam pela cidade durante a Queima das
Fitas. Fui igualmente o autor anónimo, por razões óbvias, de um escrito com umas
teses contra a Queima que circulou abundantemente nas três cidades
universitárias.
Nele, contrariamente ao que faziam os estudantes do PCP - que aceitavam a praxe,
apenas achavam que ela devia ser suspensa por razões de "luto académico" -,
combatia a praxe pela mundividência cultural que lhe estava associada, pelo seu
conteúdo machista e marialva, pelo seu reaccionarismo estético, pela sua
infantilização dos estudantes como seres irresponsáveis, que só serviam para
brincadeiras de mau gosto. A Queima era então no Porto uma sucessão de "saraus",
entremeados de "rallies", touradas, bênçãos, bailes, culminando num cortejo de
carros e piadas que não tinham graça nenhuma e deixavam um rasto de gente bêbada
por toda a cidade. Há poucos anos tive ocasião de observar o mesmo espectáculo
decadente em Coimbra, só que o vinho tinto era substituído por "shots" e
cerveja, não encontrando praticamente um estudante que estivesse sóbrio no dia
do fim da Queima.
Os hábitos da praxe que hoje são um anacronismo insensato remetem para um mundo
corporativo medieval, para uma época em que as universidades tinham regimento e
polícia e em que os estudantes se defendiam da autoridade dos "lentes",
construindo um mundo de regras autónomas que reproduziam, aliás, o ambiente
igualmente claustrofóbico da universidade "séria". Mas Coimbra nunca foi
Heidelberg e o ambiente fechado, que páginas e páginas de sátira e de crítica já
tinham denunciado, pela pena dos escritores século XIX e XX, não favorecia a
liberdade de espírito, nem qualquer irreverência. Hoje no século XXI, a praxe é
um traço anacrónico que puxa Portugal para um passado de que, mais que tudo, as
universidades o deviam libertar.
[anterior]
|