|
Público - 20 Jan 03
Radicais e Reformistas
Por MÁRIO PINTO
1. Devo muito à sorte de, logo após a minha licenciatura coimbrã em Direito,
me ter integrado, entusiástica e esforçadamente, num grupo lisboeta de
fraternos amigos, sobretudo economistas, em que com eles me empenhei no
estudo dos problemas sociais numa perspectiva interdisciplinar. Fui então
obrigado a aprender alguma economia, sociologia e ciência política, a
ponto de ter chegado a considerar-me um jurista
arrependido. É verdade que também dei um contributo
específico pessoal na área do Direito do Trabalho, ao
tempo inexistente nos planos curriculares das licenciaturas de Direito - até
em Espanha havia, mas em Portugal, não! Do que aliás muito me honro. Mas
nunca mais regressei ao cultivo "exclusivo" do Direito, embora tenha
centrado no seu ensino a minha vida docente.
Entre muitas descobertas para mim deslumbrantes nos milhentos livros de
várias ciências sociais que esforçadamente fomos acumulando no saudoso
Gabinete de Investigações Sociais (GIS), recordei-me recentemente de uma
(não das mais importantes, diga-se), que incluía uma teorização
psico-sociológica. A questão era a de tentar caracterizar os
temperamentos políticos, ou ideológicos. Sendo evidente
que há homens e mulheres inteligentes e honestos na
direita como na esquerda política, e até nos extremos de
ambas estas posições, podemos nós obter uma explicação, para
cada caso? Porque é que (perante uma mesma situação social) uma tal
pessoa é de esquerda? E uma tal outra é de direita? E
outra ainda de centro? -porque o centro existe, no
espectro partidário como igualmente em cada uma das
ideologias. Muitas vezes possuem a mesma posição sócio-económica, são
irmãos, estudaram na mesma escola, possuem a mesma cultura e a mesma
educação. Admitindo que estes factores sejam importantes, eles não
explicam, portanto, toda a realidade. Haveria, então,
"temperamentos" políticos, de direita e de esquerda, de
centro e de extremo?
Num tempo como era aquele nosso português dos anos 60, esta questão era
interessante. Claro que havia o outro lado, o das ideologias. Este também
o estudámos, e há resultados publicados. De onde depois
evoluímos (com destaque para Sedas Nunes, o pai da
moderna sociologia portuguesa) para a epistemologia e as
doutrinas políticas, com diferenças entre nós.
2. Porque recordo estas coisas? Porque se repetem hoje, por exemplo nas
contrastadas posições perante o projecto do Código de Trabalho e perante
as evidentes dificuldades económicas e sociais que o País
atravessa.
No conjunto das diversas posições e análises, certas declarações tendem para
o simplismo de um radicalismo utópico em vista de subidos ideais. Mas
outras posições há que, de forma evidente, levam mais em
conta a interpelação que nos vem das realidades, tais
como são apuradas nas análises científicas -
designadamente do panorama económico, social e cultural do país, que é (não
há dúvidas nem desculpas) resultado do sistema que temos tido e
praticado.
Na perspectiva implicitamente reformista (e portanto não apenas
esconjuratória e resistente à mudança), destaco dois artigos recentes,
saídos no "Expresso" do passado dia 11, um de João Carlos Espada, em que
se dá uma pintura impressionista e impressionante da
realidade portuguesa, e outro do Presidente da República,
que não desdenhou descer à arena da análise e da opinião
num artigo notável, que só me espanta não tenha merecido
mais comentário. Lamentavelmente, a "comunicação" privilegia a
abordagem da intriga política: mais lhe interessa explorar a questão de
saber se o Presidente vai fazer oposição política ao Governo ou em
alternativa comprometer-se com ele (a mediática questão da coabitação).
Em lugar de debater o pensamento do Presidente - que,
evidentemente, se escreveu o que escreveu e como
escreveu, só pode ter sido por fortíssimas razões.
3. Neste contexto, e como que sintetizando-o no campo sindical, duas
figuras, ambas do espaço da esquerda, se destacam na actualidade
portuguesa: os secretários gerais da CGTP e da UGT. O
primeiro, já foi nomeado por Marcelo Rebelo de Sousa como
figura do ano. Discordo e, pelo contrário, eu nomeio João
Proença como a figura que merece destaque, como já vencedora da
grande batalha da reforma do nosso Direito do Trabalho. Ele foi sozinho
(com os seus pares), politicamente sem o apoio do seu
partido (ao contrário de Carvalho da Silva), quem decidiu
a concertação social, que o ministro do Trabalho muito
bem fez em promover e aceitar, tal como (deve notar-se) os
empresários. Ganhou não apenas um inicialmente muito difícil e arriscado
consenso; mas com isso obteve também mais uma vitória da concertação
social - num tempo em que não é possível pura e
simplesmente continuar com a sacralização do velho
paradigma laboral e sindical de há trinta anos.
4. Entre utópicos e realistas, radicais e reformistas, a história é velha. E
inúmeros os episódios. Recordo as primeiras comunidades cristãs de
Jerusalém, descritas nos Actos dos Apóstolos: "todos os crentes viviam
unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e
distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as
necessidades de cada um" (Act 44-45). Foi com certeza
daqui que Marx, como tantos outros, copiou a belíssima
fórmula da sociedade comunista: a cada um segundo as suas necessidades -
sociedade essa que, porém (e muito significativamente), tinha que ser
precedida da fase intermédia da sociedade socialista, em que a cada um
era distribuído segundo o seu trabalho. Aquelas
comunidades cristãs de Jerusalém, com o seu radicalismo,
caíram na pobreza - e por isso foi preciso que S. Paulo
andasse pelas comunidades cristãs da actual Turquia e Grécia a
recolher fundos para lhes enviar esmolas. Tinham-se esquecido de que para
distribuir é preciso produzir, talvez com a justificação de que estaria
próximo o fim dos tempos, desculpa que nós não temos hoje.
Essa experiência da história cristã deve ter ajudado S. Tomás de Aquino a
perfilhar as fundamentações realistas de Aristóteles para legitimar o
direito de propriedade e administração privada dos bens (sem prejuízo de
afirmar como direito natural primário o seu destino universal). Se
vivesse nos tempos de hoje, talvez S. Tomás fizesse a
concertação social com o ministro Bagão Félix, do mesmo
passo que recomendaria a todos os proprietários, de bens
ou de postos de trabalho, empresários e trabalhadores,
que, como bons administradores, administrassem sempre no
interesse comum de todos.
[anterior]
|