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Público - 26 Jan 03
Agora e na Hora da Tv-crime
Por AUGUSTO M. SEABRA
A imensa questão é a de saber se podemos aceitar passivamente que a instituição
da televisão como regulador das conflitualidades e da própria vida em sociedade
se omni-apresente, secundarizando ou as instituições e normas consagradas da
regulação social - e nenhumas têm um tão grande peso simbólico como a Justiça e
as garantias, liberdades e direitos dos cidadãos.
A última vaga marcante fora há dois anos, quando a SIC, no último estertor de
Rangel, respondeu ao "Big Brother" da TVI com "O Bar da TV"; última vaga porque
a réplica depois do "verdadeiro Big Brother" vinha confirmar o triunfo da "tele-realidade",
última vaga pela onda de clamores que suscitou, e que afinal não conduziu a um
pífio pacto de auto-regulação entre os operadores que só poderia ter logo como
destino o caixote do lixo.
Agora, a nova vaga de formatos, os "Bombástico", "Eu Confesso", "O Crime Não
Compensa", levanta outro coro de indignação. A essa temos direito. Mas com as
televisões, com a presença da televisão na vida quotidiana e com a sua
capacidade exponencial de moldar expectativas e imaginários, não se pode
proceder simplesmente por indignação, que as mais das vezes, na prática, redunda
em impotência. Face à televisão, há uma capacidade de que ainda mais não podemos
prescindir: a de pensar, de o tentar.
Para não irmos mais longe, e até longe de mais para o que neste momento importa,
às características genéricas do meio televisivo e da sua recepção, é patente que
o patamar a partir do qual se originaram as situações foi a entrada dos
operadores privados e o regime concorrencial, há 10 anos.
Dir-se-á que aumentou o espaço de liberdade, o que será inegável, mas que na sua
estrita vertente económica da "liberdade para escolher" é também mistificador:
face à televisão, não temos a possibilidade de apenas não estar interessados num
ou noutro programa, ou até de afirmar a nossa mais absoluta liberdade de nem
sequer consumir televisão, porque só o poderíamos fazer no mais absoluto
alheamento do mundo - mesmo que não sejamos consumidores, as envolventes sociais
já estão elas moldadas pelo império da televisão.
A conflitualidade e a perplexidade que a intensificação concorrencial vêm
introduzir radica-se numa capacidade totalizante da televisão, que se insinua na
vida quotidiana como horizonte geral de regulação. Quero saudar a namorada?
Mando uma mensagem, que corre em oráculo numa televisão! Quero encontrar
familiares que não vejo há muito? Quero protestar por isto ou aquilo? Recorro à
televisão! Esta insinuação está enraizada. Ainda recentemente presenciei uma
situação respeitante a um problema de atendimento clínico em que alguém disse
"fale pr'à SIC", como uma outra em que alguém ameaçava "olha que chamo a SIC"!
Diz-se que a televisão é "um espelho da realidade" (ou do país). Peregrina
concepção, feita só de automatismo reflexivo, que escamoteia o modo como a
televisão produz uma realidade! Se a televisão não é um "espelho", é certamente
condensador, socialmente relevante como nenhum outro, que impõe as suas
realidades e se apresenta como horizonte inescapável.
A questão, a imensa questão, é a de saber se podemos aceitar passivamente que a
instituição da televisão como regulador das conflitualidades e da própria vida
em sociedade se omni-apresente, secundarizando ou mesmo estiolando as
instituições e normas consagradas da regulação social - e nenhumas têm um tão
grande peso simbólico como a Justiça e as garantias, liberdades e direitos dos
cidadãos. Que são as que agora redobradamente estão em causa, muito para além de
uma mera lógica "sensacionalista" que importaria "denunciar".
Correndo o risco de alguns acharem que era uma embirração pessoal, chamei
repetidamente a atenção, ao longo dos anos, para um programa da SIC, "O Juiz
Decide", que não tinha laivos "sensacionalistas", antes era afável e até
paternalista, mas foi o primeiro a insinuar que a regulação judicial dos
conflitos podia tele-transferir-se. Depois o "Quero Justiça" na TVI
afigurou-se-me condensar uma lata pulsão, "Quero TV" [ver PÚBLICO de 22/7/2001].
A novidade do "Big Brother" não é a promessa da celebridade (qualquer concurso
televisivo a tinha) mas uma radical redefinição da nossa tele-existência:
perante os outros, mas também perante nós próprios, insinua-se, a existência, o
Eu mesmo, deseja-se validado pela sua comprovação televisiva. A confluência das
duas lógicas particulares, de substituição judicial e de tele-existência, pode
ser explosiva.
O que agora a "tv-crime" propõe não é apenas uma exploração mórbida nem a
derrisão das instituições judiciais e judiciárias, o que não já não seria pouco
grave. O que ela no mais forte de si insinua é o apelo do interdito e mesmo do
crime.
Todos nós já sentimos certamente o apelo do interdito. Essa pulsão que em
diferentes modos até podemos prezar não desvanecerá que nenhuma sociedade se
organiza sem tabus e interditos. Quando se institui (porque a televisão também é
uma instituição) o apelo continuado do interdito, são os próprios elos da vida
socialmente organizada a serem corroídos. Quando continuadamente se disseca a
capacidade tele-espectacular do interdito socialmente sancionado como "crime" é
evidente que se deixa insinuado que comprovação televisiva da existência, à
falta de se ser seleccionado para um "big brother", pode ser obtida, porque
não?, pela prática de um crime - modo garantido de aceder aos famosos 15 minutos
de celebridade que a todos Andy Warhol postulava.
Sim, temos direito à indignação, sem para isso abdicar da tentativa de pensar.
Basta exigir, sem necessidade de novos articulados, que o disposto de lei, como
o PÚBLICO ontem reproduzia, seja efectivamente aplicado. É ver se recaindo na
SIC as coimas previstas, o dr. Balsemão não dá logo instruções para mudar a
natureza do detrito - e do delito.
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