Público - 6 Jan 04

A Vida para Além do Défice
Por ALEXANDRA D'ALMEIDA TETÉ

Ante a proximidade de novas eleições legislativas, é oportuno perspectivar quais as questões decisivas a ter em consideração, bem como o que se pode esperar e o que se deve exigir aos principais partidos, na campanha eleitoral que se avizinha.

Julgo que podemos tomar como referência alguns dos traços marcantes das recentes votações nos Estados Unidos, em Espanha e na União Europeia - anteriores ou posteriores aos respectivos actos eleitorais -, para salientar a relevância maior que os "valores" e as convicções morais estão a assumir no debate público. De facto, em todos aqueles casos se travou (e continua a travar) um aceso combate cultural a propósito daqueles que são factores principais da paisagem moral e política do futuro: o valor da vida, em torno da questão do aborto ou da manipulação de embriões; o valor e papel da família heterossexual monogâmica, em torno das questões do "casamento" entre pessoas do mesmo sexo, da adopção de crianças por homossexuais "casados" (entre si) ou solteiros (que está a ser objecto de uma fortíssima campanha do "lobby gay") e, paradoxalmente, do favorecimento do divórcio entre os casais comuns (os heterossexuais) como acontece com a Espanha de Zapatero; e, finalmente, o recrudescimento agressivo do laicismo anticristão, de novo em Espanha e também no seio da União Europeia, onde a recusa da referência ao património cultural judaico-cristão no Preâmbulo do Tratado Constitucional e o triste episódio de raiva sectária contra Rocco Buttiglione não auguram nada de bom.

É impossível argumentar longamente, nestas linhas, sobre estas complexas questões, mas não é difícil perceber que não são contornáveis e que não devem ser iludidas ou escamoteadas. Elas afectam os fundamentos da convivência social e da própria comunidade política, que não pode subsistir sem um "ethos" partilhado. Elas estão na raiz do mal-estar profundo e da crispação e ansiedade que caracterizam o nosso tempo e não serão satisfeitas por qualquer "choque fiscal", "tecnológico" ou outro. Ontem como hoje, as aspirações profundas das pessoas não são saciáveis distribuindo ao povo mais "pão e circo", por muito importantes que estes sejam.

Por outro lado, importa sublinhar a necessidade de um "chão" ético comum, capaz de sustentar uma sociedade livre e hospitaleira - no âmbito da qual cada um possa perseguir a sua "luz interior" -, de a defender das ameaças do niilismo e de garantir a liberdade e os direitos humanos. E, novamente, não é difícil perceber de onde provêm e como se apresentam essas ameaças: da liberalização do aborto - primeiro até às 10 ou 12 semanas, depois, porquê parar aí?; da eutanásia - primeiro de anciãos e deficientes adultos, depois a de crianças deficientes; entretanto, do "casamento" entre homossexuais, a seguir, a possibilidade de adoptarem crianças; da experimentação em embriões - primeiro utilizando-os como material humano sob pretextos de beneficência e fins "científicos", mais tarde de criação de um "homem novo".

Ao mesmo tempo, não faltará entre os defensores dessas teses "fracturantes" quem defenda a sacralidade da mãe-terra e os "direitos" dos animais (de todos, menos um). No fim, o que restará da dignidade inviolável da pessoa humana (sobretudo quando está mais débil e indefesa: nos não nascidos, nas crianças, nos velhos, nos portadores de deficiências), que não pode ser tratada nunca como um meio, mas sempre como um fim?

Em suma, seria muito bom que os partidos nos esclarecessem sobre quais as suas propostas nestas matérias. Não me refiro, como é óbvio, ao PCP ou ao Bloco. Já sabemos que eles não gostam das sociedades democráticas liberais de tipo ocidental - querem minar os seus fundamentos; sabemos que eles não gostam da família - querem "desconstruí-la"; sabemos também que desprezam as religiões monoteístas tradicionais, e especialmente o cristianismo: se pudessem, remetê-lo-iam, "benevolamente", para as catacumbas da subjectividade, para afirmar a profanidade absoluta do espaço público; sobretudo, não gostam da pessoa humana tal como ela é - acham que o homem e a mulher estão mal feitos (aliás, não gostam muito de falar do sexo masculino ou do feminino - preferem o "género" e as suas ambiguidades), e não reconhecem dignidade e valor intrínseco à pessoa humana.

Era muito positivo que os principais partidos tivessem a coragem de afirmar os seus "valores" e de nos informar sobre o modo de os promover e favorecer. Até porque precisamos de alternativas para saber em quem votar.

Ficamos à espera.

Associação Mulheres em Acção

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