Público - 22 Jan 07

 

NÃO. Outra vez não!

Graça Franco


Sempre que se fala em aborto a coisa descamba. De parte a parte o insulto torna-se fácil e a demagogia espreita. Cada lado acusa o adversário de toda a espécie de desvios e crimes intelectuais. Como mais uma vez me encontro do lado do NÃO, não sou observador neutro. Talvez, por isso, ache que desta vez o SIM exagerou! Não quer apenas convencer os portugueses da justeza da respectiva argumentação mas, imagino que por falta dela, pretende tornar extensiva a sua obsessão politicamente correcta à própria argumentação da contraparte.
Decreta, por exemplo, que não se pode falar sobre os custos do novo "direito ao aborto livre e a pedido até às dez semanas". Porque isso é baixar o nível da discussão e trazer a sagrada questão do direito à vida para o nível das rubricas do défice. Ora uma coisa não tem nada a ver com a outra. Como economista recuso-me a olhar para uma opção desta natureza sem contabilizar também os recursos envolvidos. Se estivéssemos a nadar em dinheiro a lei seria boa? Claro que não. Mas isso não obsta a que, não o tendo, além de intrinsecamente má seja também política e economicamente escandalosa.
Passei boa parte dos últimos seis meses entre salas de espera e corredores hospitalares repletos de macas e doentes (daí a longa ausência nestas páginas). Vivi de perto o caos do nosso sistema de saúde. Participei activamente nele. Explicaram-me, numa farmácia hospitalar, que para conter os custos de algumas patologias "muito caras" se tinham feito novos acordos que impediam o uso das terapêuticas anteriores! Resultado: eu ainda "tinha sorte" mas os novos pacientes seriam já contemplados com novos fármacos. Vão curar-se na mesma. Nada a dizer, não fossem os danos "colaterais" resultantes de esses remédios serem por exemplo ministrados em doses únicas preparadas para pesos médios muito superiores aos dos doentes portugueses. A coisa só é assim porque o dinheiro não chega para tudo, não há mentes perversas empenhadas em minimizar o custo e maximizar os efeitos secundários. Estou a falar de doenças a que, caridosamente, o actual ministro rotula de "catastróficas!" Se a entidade reguladora quiser investigar... eu informo.
Não abdico do direito à indignação quando, neste quadro, vejo o ministro todo lampeiro a dizer que os abortos a pedido, porque são prioritários, serão devidamente pagos com os nossos impostos e facultados em tempo em clínicas privadas contratadas para o efeito. Ficassem eles sujeitos às listas de espera e seria ver as criancinhas a nascer "de termo", bem antes de chegar a hora da intervenção para lhes pôr fim à vida...
A luta contra o aborto clandestino é, em matéria de saúde pública, uma prioridade? Canalizem-se para a prevenção e ajuda às mulheres em dificuldades esses meios. Sempre são dez milhões de euros nas contas do próprio ministro e quase 30 nas de António Borges. Mas não se continuem a empurrar as mulheres para a não solução do aborto, atafulhando ainda mais hospitais. Gravidez, bem diz o povo, não é doença!". Não se engordem mais, e às custas de todos, os lucros dos que fazem do drama e do desespero dos outros fonte de negócio.
E o "drama das mulheres sujeitas à humilhação e ameaça de prisão"? Falácia. Fosse esse o problema e a liberalização teria de ser total e sem prazos. O que nem o SIM defende. A suposta humilhação e a dita ameaça continuará na lei, não só para quem aborte às onze semanas, como para quem aborte mesmo por motivos excepcionais já consagrados fora dos prazos previstos.
E em matéria de prazos é notável que, quase dez anos depois do último referendo, a desinformação continue gritante. Num texto em torno do código deontológico dos médicos, o PÚBLICO trazia em destaque os prazos da lei de 84 como se ainda estivessem em vigor. E mais irónico ainda, o Dr. Vital Moreira, dias depois, sob o título "Quando o erro conforta o erro" voltava ao tema e, logo no segundo parágrafo, acrescentava ao título um terceiro erro ao ignorar, mais uma vez, as alterações introduzidas no código penal pela lei 90/97 de 30 de Junho que alarga os prazos do aborto legal de 12 para 16 semanas em caso de violação e de 16 para 24 em caso de malformação fetal.
Um jurista não tem a sensibilidade aos números que me é requerida mas não deixa de ser curiosa essa insensibilidade quando os seus pares, juízes do Tribunal Constitucional, no acórdão em defesa da justeza do actual referendo, colocam exactamente na questão "dos prazos" o centro nevrálgico do equilíbrio do confronto entre a protecção dos direitos da mãe ao desenvolvimento harmonioso da respectiva personalidade e a protecção do direito à vida do filho nascituro (vide o notável texto de Mário Pinto sobre o tema). Nessa linha, ignorar a alteração introduzida na lei de 97 significa subestimar em 50 por cento a protecção já concedida aos direitos da mulher (face aos do respectivo filho) no actual quadro jurídico. Não é desvio menor.
Fosse a preocupação do SIM apenas a de evitar os julgamentos e teriam acolhido as várias iniciativas nesse sentido (desde a sugestão do professor Freitas do Amaral às propostas das deputadas socialistas independentes). Vale a pena, passar os olhos no argumentário do Dr. Pedro Vaz Patto, (www.protegersemjulgar.com) defensor de uma dessas soluções, e que desmonta com enorme justeza e serenidade os contra-argumentos do Bloco de Esquerda e da JS.
Por último, o SIM pretende impor que, para ser coerente, o NÃO não pode limitar-se a recusar o aborto a pedido até às dez semanas, invocando o valor da vida desde a concepção, sem com isso reclamar em coerência a revisão da lei. Era cómodo e tacticamente hábil voltar a acantonar o NÃO no debate casuístico das situações dramáticas, mas a verdade é que os portugueses são agora apenas chamados a votar se para além de todos os casos, excepcionais e dramáticos em que bem ou mal (em meu entender mal!) os abortos já são possíveis e realizados no SNS, querem também tornar legal e pago pelo Estado um número indeterminado de novos abortos para os quais a mulher não tem de invocar o menor motivo. Com o único e arbitrário limite de serem realizados "até às dez semanas". Basta a mulher alegar que na dita barriga manda ela! Lembram-se?
O SIM tarda em perceber que desta vez não é possível encostar os partidários do NÃO algures entre as ameaçadas radicais de excomunhão de um certo clero, e a margem direita das paredes de alguma sacristia. Entre as vozes do NÃO há tantos crentes como laicos, porque esta não é uma questão religiosa mas civilizacional. Há até lugar para os principais autores e defensores da lei em vigor (como Zita Seabra). Ou para quem abortou ou ajudou a abortar. Gente que nalguns casos se arrependeu e noutros permanece fiel às suas opções de sempre e sem a menor culpa mas, não se recusa a perceber que o mundo mudou e as "razões" de antes já não fazem sentido. Nada justifica agora o que até há vinte ou trinta anos (embora sempre tivesse sido visto como um mal!) era infinitamente mais comum e difícil de evitar.
Hoje vive-se imerso em informação, o planeamento familiar é acessível e generalizado. Em casos em que um filho não seja desejado podem usar-se em simultâneo vários métodos, tornando a gravidez uma improbabilidade estatística. A moral católica só obriga os próprios. Além disso, ninguém pode ainda pensar que às dez semanas está a eliminar um monte de células vagamente indiferenciado! Em caso de dúvida, na primeira ecografia (entre as sete e as nove semanas) as mães vêem hoje os respectivos bebés com elementar clareza. Quando são desejados são as primeiras e exibir a primeira "fotografia do bebé". Nunca vi ninguém chamar-lhe imagem ecográfica do respectivo embrião. A nova vida não É ou deixa de ser conforme o interesse da altura dos progenitores. Jornalista