Sempre que se fala em aborto a coisa descamba. De
parte a parte o insulto torna-se fácil e a demagogia
espreita. Cada lado acusa o adversário de toda a
espécie de desvios e crimes intelectuais. Como mais
uma vez me encontro do lado do NÃO, não sou
observador neutro. Talvez, por isso, ache que desta
vez o SIM exagerou! Não quer apenas convencer os
portugueses da justeza da respectiva argumentação
mas, imagino que por falta dela, pretende tornar
extensiva a sua obsessão politicamente correcta à
própria argumentação da contraparte.
Decreta, por exemplo, que não se pode falar sobre os
custos do novo "direito ao aborto livre e a pedido
até às dez semanas". Porque isso é baixar o nível da
discussão e trazer a sagrada questão do direito à
vida para o nível das rubricas do défice. Ora uma
coisa não tem nada a ver com a outra. Como
economista recuso-me a olhar para uma opção desta
natureza sem contabilizar também os recursos
envolvidos. Se estivéssemos a nadar em dinheiro a
lei seria boa? Claro que não. Mas isso não obsta a
que, não o tendo, além de intrinsecamente má seja
também política e economicamente escandalosa.
Passei boa parte dos últimos seis meses entre salas
de espera e corredores hospitalares repletos de
macas e doentes (daí a longa ausência nestas
páginas). Vivi de perto o caos do nosso sistema de
saúde. Participei activamente nele. Explicaram-me,
numa farmácia hospitalar, que para conter os custos
de algumas patologias "muito caras" se tinham feito
novos acordos que impediam o uso das terapêuticas
anteriores! Resultado: eu ainda "tinha sorte" mas os
novos pacientes seriam já contemplados com novos
fármacos. Vão curar-se na mesma. Nada a dizer, não
fossem os danos "colaterais" resultantes de esses
remédios serem por exemplo ministrados em doses
únicas preparadas para pesos médios muito superiores
aos dos doentes portugueses. A coisa só é assim
porque o dinheiro não chega para tudo, não há mentes
perversas empenhadas em minimizar o custo e
maximizar os efeitos secundários. Estou a falar de
doenças a que, caridosamente, o actual ministro
rotula de "catastróficas!" Se a entidade reguladora
quiser investigar... eu informo.
Não abdico do direito à indignação quando, neste
quadro, vejo o ministro todo lampeiro a dizer que os
abortos a pedido, porque são prioritários, serão
devidamente pagos com os nossos impostos e
facultados em tempo em clínicas privadas contratadas
para o efeito. Ficassem eles sujeitos às listas de
espera e seria ver as criancinhas a nascer "de
termo", bem antes de chegar a hora da intervenção
para lhes pôr fim à vida...
A luta contra o aborto clandestino é, em matéria de
saúde pública, uma prioridade? Canalizem-se para a
prevenção e ajuda às mulheres em dificuldades esses
meios. Sempre são dez milhões de euros nas contas do
próprio ministro e quase 30 nas de António Borges.
Mas não se continuem a empurrar as mulheres para a
não solução do aborto, atafulhando ainda mais
hospitais. Gravidez, bem diz o povo, não é doença!".
Não se engordem mais, e às custas de todos, os
lucros dos que fazem do drama e do desespero dos
outros fonte de negócio.
E o "drama das mulheres sujeitas à humilhação e
ameaça de prisão"? Falácia. Fosse esse o problema e
a liberalização teria de ser total e sem prazos. O
que nem o SIM defende. A suposta humilhação e a dita
ameaça continuará na lei, não só para quem aborte às
onze semanas, como para quem aborte mesmo por
motivos excepcionais já consagrados fora dos prazos
previstos.
E em matéria de prazos é notável que, quase dez anos
depois do último referendo, a desinformação continue
gritante. Num texto em torno do código deontológico
dos médicos, o PÚBLICO trazia em destaque os prazos
da lei de 84 como se ainda estivessem em vigor. E
mais irónico ainda, o Dr. Vital Moreira, dias
depois, sob o título "Quando o erro conforta o erro"
voltava ao tema e, logo no segundo parágrafo,
acrescentava ao título um terceiro erro ao ignorar,
mais uma vez, as alterações introduzidas no código
penal pela lei 90/97 de 30 de Junho que alarga os
prazos do aborto legal de 12 para 16 semanas em caso
de violação e de 16 para 24 em caso de malformação
fetal.
Um jurista não tem a sensibilidade aos números que
me é requerida mas não deixa de ser curiosa essa
insensibilidade quando os seus pares, juízes do
Tribunal Constitucional, no acórdão em defesa da
justeza do actual referendo, colocam exactamente na
questão "dos prazos" o centro nevrálgico do
equilíbrio do confronto entre a protecção dos
direitos da mãe ao desenvolvimento harmonioso da
respectiva personalidade e a protecção do direito à
vida do filho nascituro (vide o notável texto de
Mário Pinto sobre o tema). Nessa linha, ignorar a
alteração introduzida na lei de 97 significa
subestimar em 50 por cento a protecção já concedida
aos direitos da mulher (face aos do respectivo
filho) no actual quadro jurídico. Não é desvio
menor.
Fosse a preocupação do SIM apenas a de evitar os
julgamentos e teriam acolhido as várias iniciativas
nesse sentido (desde a sugestão do professor Freitas
do Amaral às propostas das deputadas socialistas
independentes). Vale a pena, passar os olhos no
argumentário do Dr. Pedro Vaz Patto, (www.protegersemjulgar.com)
defensor de uma dessas soluções, e que desmonta com
enorme justeza e serenidade os contra-argumentos do
Bloco de Esquerda e da JS.
Por último, o SIM pretende impor que, para ser
coerente, o NÃO não pode limitar-se a recusar o
aborto a pedido até às dez semanas, invocando o
valor da vida desde a concepção, sem com isso
reclamar em coerência a revisão da lei. Era cómodo e
tacticamente hábil voltar a acantonar o NÃO no
debate casuístico das situações dramáticas, mas a
verdade é que os portugueses são agora apenas
chamados a votar se para além de todos os casos,
excepcionais e dramáticos em que bem ou mal (em meu
entender mal!) os abortos já são possíveis e
realizados no SNS, querem também tornar legal e pago
pelo Estado um número indeterminado de novos abortos
para os quais a mulher não tem de invocar o menor
motivo. Com o único e arbitrário limite de serem
realizados "até às dez semanas". Basta a mulher
alegar que na dita barriga manda ela! Lembram-se?
O SIM tarda em perceber que desta vez não é possível
encostar os partidários do NÃO algures entre as
ameaçadas radicais de excomunhão de um certo clero,
e a margem direita das paredes de alguma sacristia.
Entre as vozes do NÃO há tantos crentes como laicos,
porque esta não é uma questão religiosa mas
civilizacional. Há até lugar para os principais
autores e defensores da lei em vigor (como Zita
Seabra). Ou para quem abortou ou ajudou a abortar.
Gente que nalguns casos se arrependeu e noutros
permanece fiel às suas opções de sempre e sem a
menor culpa mas, não se recusa a perceber que o
mundo mudou e as "razões" de antes já não fazem
sentido. Nada justifica agora o que até há vinte ou
trinta anos (embora sempre tivesse sido visto como
um mal!) era infinitamente mais comum e difícil de
evitar.
Hoje vive-se imerso em informação, o planeamento
familiar é acessível e generalizado. Em casos em que
um filho não seja desejado podem usar-se em
simultâneo vários métodos, tornando a gravidez uma
improbabilidade estatística. A moral católica só
obriga os próprios. Além disso, ninguém pode ainda
pensar que às dez semanas está a eliminar um monte
de células vagamente indiferenciado! Em caso de
dúvida, na primeira ecografia (entre as sete e as
nove semanas) as mães vêem hoje os respectivos bebés
com elementar clareza. Quando são desejados são as
primeiras e exibir a primeira "fotografia do bebé".
Nunca vi ninguém chamar-lhe imagem ecográfica do
respectivo embrião. A nova vida não É ou deixa de
ser conforme o interesse da altura dos progenitores.
Jornalista