Público - 28 Jul 03

A República dos Juizes
Por LUÍS SALGADO DE MATOS

Há uns dez anos, a magistratura de Milão destruiu a "tangentepolis", a rede de corrupção que alimentava a política italiana. Desde então, multiplicaram-se as intervenções dos magistrados por essa Europa fora - e as queixas contra o excesso de poder deles.

O poder dos juizes terá aumentado? No berço dos parlamentos, o sr. Blair tem que nomear uma comissão judicial - pois sabe que os britânicos não acreditariam na investigação parlamentar. Parece que aumentou, embora não tenhamos um índice rigoroso desse poder.

Porquê esse aumento? No essencial, por dois motivos: a destruição das elites europeias na Segunda Guerra Mundial e a crise dos corpos intermédios.

As elites europeias cometeram "hara-kiri" em 1939-1945 ao fazerem uma guerra fratricida - e ao fecharem os olhos ao "Holocausto". O carácter totalitário do comunismo russo afogara no ovo uma contra-elite. Após 1945, uns quantos crimes coloniais não reforçaram o moral dos sobreviventes da velha elite europeia - que se dizia cristã, erguera o parlamento, revolucionara o mundo com o liberalismo económico. Os europeus deixaram de acreditar na autoridade: reis, ministros, generais, empresários, usam luvas para esconderem as mãos sujas de sangue.

Deste vácuo, surgiram novas elites políticas - sem tradições, sem dinheiro, sem princípios - excepto a crença absurda no "marketing" e na bondade moral da eficácia técnica. Para elas, o Estado era um modo de vida. Por isso muitos desculpavam actos que o cidadão tinha por corruptos. Antes da "tangentepolis", desviar para o partido era uma benemerência. Que dispensava a garantia de que o dinheiro desviado iria mesmo para o partido e não para o bolso do benemérito autor do desvio. A política ficou mais cara - o que agravou tudo. Donde o reforço do papel dos juizes.

A política ficou mais cara porque enfraqueceram os corpos intermédios entre o cidadão e o Estado: a família como forma imediata de sociabilidade, a freguesia como lar de vizinhos, a empresa como comunidade, a profissão como grupo duradouro, a escola como fraternidade do saber. Esses corpos deixaram de transmitir mensagens políticas - e os políticos tiveram que gastar mais dinheiro com a publicidade. Pior: desapareceu a normatividade que os corpos intermédios ministravam aos seus membros - aos cidadãos, afinal.

Para responder ao vazio assim gerado, o Estado alarga a sua acção social; fez - e faz - leis que mais enfraquecem ainda os grupos intermédios. Por exemplo: para enfrentar a crise da família, a lei estatal reforça o divórcio que mais debilita a família. Essas leis têm que ser aplicadas - pelos juizes.

Era por isso inevitável o aumento do poder dos tribunais face às assembleias eleitas e à burocracia estatal. Se as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, esse poder aumentará: o Estado não diminui o peso dos impostos e alarga a sua actividade ao campo dos costumes.  

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