A Tirania da
Maioria
Por LUÍS SALGADO
DE MATOS
O leitor já reparou
que nas últimas semanas vários casais presenteiam-nos com a
apresentação das suas dificuldades domésticas. Fazem-no por meio da
televisão e dos jornais. Este procedimento viola os direitos do
leitor.
O primeiro direito
violado é o da informação. Quem compra um jornal ou abre o televisor
tem o direito de supor que não será obrigado a ver cenas da vida
doméstica - ainda que seja a vida doméstica de pessoas conhecidas.
Porque essas cenas fazem parte do "privado" e os meios de comunicação
social tratam, como o próprio nome indica, do "social" - isto é, do
que não é privado.
Dito de outra forma. A
divisão entre "público" e "privado" inclui a proibição de cada um de
nós "publicitar" o que é por natureza "privado": a narrativa
pormenorizada das relações sexuais entre marido e mulher,
indispensável à subsistência do contrato de casamento, configurará por
certo, se for feita no telejornal da hora do jantar, o crime de
ofensas ao pudor. Uma regra social simétrica proíbe-nos de "privatizar"
o "público": não devemos narrar segredos de Estado às nossas mães.
Quem viola esta regra subverte o pluralismo social no qual assentam
todos os nossos direitos.
Se há cidadãos que
expõem em público a sua intimidade - mesmo a delituosa - qual será o
fundamento do "segredo de justiça"? Se certos prevaricadores se
oferecem ao julgamento na praça pública, por interpostos "mass media",
qual será a base de uma justiça independente cujos actos não são
escrutinados em tempo real pelas câmaras de televisão? Se os cidadãos
renunciam a direitos irrenunciáveis, como o direito à privacidade,
será possível manter nas leis esses direitos todos os dias revogados
pela prática social?
Durante algum tempo,
manter-se-ão esses direitos pela força da inércia. Mas, mais tarde ou
mais cedo, a nova prática social revogará as antigas leis - e estará
estabelecida a "tirania da maioria". A curiosidade e a inveja levarão
à punição de quem recuse revelar toda a sua vida privada em
conferência de imprensa transmitida em directo pela televisão.
A solução lógica seria
punir os infractores dos direitos. Estamos porém todos persuadidos que
eles estão a exercer direitos absolutamente fundamentais. Por isso, a
situação agravar-se-á.
Que devemos então
fazer? Devemos usar os meios que a separação público-privado ainda nos
dá. Por exemplo: ensinarmos as crianças a não crescerem grudadas a um
écran de televisor.
Ou, sempre por
exemplo: rirmo-nos. Fernando Pessoa escreveu à Bebéquinha Querida:
"todas as cartas de amor são ridículas". Todas as cenas de falta de
amor são mais ridículas - para mais porque manipulam grandes
sentimentos para esconderem o ódio e a ânsia de poder. Quem tiver
filhos a educar, explicar-lhes-á que essas cenas substituem uma falta
notória nos nossos meios de comunicação: a falta de programas
humorísticos. |