Diário de Notícias -
02 Jul 07
Gramática da polémica:
da OTA ao
TGV
João César das Neves
O novo aeroporto de Lisboa é já, indiscutivelmente,
o mais controverso e atabalhoado processo de todas
as nossas grandes infra-estruturas. Isso é dizer
muito, pois Portugal tem tido uma impressionante
história de erros de planeamento e desperdícios
monstruosos, todos ligados a longas e tortuosas
polémicas.
Se virmos com atenção, a confusão actual é bastante
surpreendente. A solução do aeroporto da Ota tinha
sido longamente estudada e aprovada por vários
governos anteriores, como o ministro não se cansa de
repetir. Ainda há poucos meses o actual Executivo
pensava poder usar esse investimento como um
incentivo simbólico da nova fase de desenvolvimento.
Além disso, a obra não é a mais cara das propostas
em debate, muito abaixo dos custos do TGV, e está
longe de ser o maior disparate do tipo, com tal
honra duvidosa a caber aos estádios de futebol do
Euro 2004. Como se transformou esta proposta simples
no maior pesadelo político do Governo?
A razão mais forte é a óbvia falta de convicção dos
responsáveis. Se se perguntar por que razão se deve
implantar o aeroporto na Ota, a resposta mais
imediata é que os estudos técnicos assim o indicam.
Ora em política só se invocam relatórios
especializados quando faltam razões claras. O
ministro é incapaz de apresentar um motivo simples,
directo, compreensível para suportar tal decisão.
Por outro lado, são várias as objecções elementares
e evidentes. A distância a Lisboa e o custo da
execução, ambos muito maiores que as alternativas,
são óbices que qualquer cidadão consegue entender.
Depois, como o Governo descobriu amargamente, a
técnica está longe de ser rigorosa, definitiva e
indiscutível, existindo estudos e especialistas para
todos os gostos. Esta combinação revelou-se
explosiva.
Este primeiro elemento é importante porque se liga a
um dos principais traços de carácter do Governo de
José Sócrates. Desde o início os ministros enunciam
princípios sólidos e propósitos sensatos, mas com
pouca convicção e profundidade. Em geral (com
excepções, como o ministro da Saúde), o Executivo
parece citar estudos que não compreendeu ou anunciar
medidas mal assimiladas. Por isso, a execução das
reformas acaba por ser muito mais tardia e diluída
do que a dureza da retórica inicial faria entender.
Tem-se a sensação de que não seria difícil que o
mesmo responsável estivesse a defender precisamente
o contrário.
Mas há uma segunda razão para a monstruosa
trapalhada da Ota, também ela ligada à identidade do
Governo: o consulado de Sócrates só age com decisão
e vigor no diálogo com grupos de pressão. É tradição
que, quando perdem o sentido de Estado, os governos
de direita cedam aos interesses privados, enquanto a
esquerda se inclina para os sectores sociais. O
problema é que em Portugal estes últimos são muitos
mais e, embora recebam individualmente menos, acabam
por representar uma factura muito maior, como
descobriu amargamente o eng. Guterres, criando o
buraco orçamental que ainda nos ameaça.
Esse défice tem forçado o actual Executivo
socialista a enfrentar, contra naturam, municípios,
empresas públicas e outros sorvedouros de dinheiros
fiscais. Mas nos projectos infra-estruturais, como o
aeroporto, ele pode manifestar os seus instintos
naturais, reforçados pela herança da anterior
encarnação. Assim, é patente que a solução da Ota
pretende acomodar os desejos da TAP, câmaras
municipais e construtoras, menosprezando os
interesses do público, contribuintes e passageiros.
Por estas razões vivemos o paradoxo inesperado de
ter um projecto mediano, sem erros monstruosos,
criar mais polémicas que qualquer outro. Pelo
contrário, no TGV vamos reviver uma situação mais
comum. A linha de alta velocidade, embora custe mais
do dobro do aeroporto, é justificada devido à
necessidade de Portugal se ligar às redes
transeuropeias. Temos pois uma razão estúpida para
resolver um problema inexistente a custos
astronómicos. Depois do complexo de Sines, do
Alqueva e do Euro 2004, a isso estamos já bastante
habituados.