Público - 03 Jul 08

 

Voltámos a 1975: vai ser proibido ser pobre
José Manuel Fernandes

 

Transformar o direito a não ser pobre num direito humano e judicializá-lo mostra que pouco se aprendeu com a história, com o debate de ideias e nada se deve à velha regra do bom sensoSe o ridículo matasse, os cangalheiros teriam hoje muito que fazer para as bandas de São Bento, pois encontrariam umas centenas de corpos para recolher, todos quantos os deputados que se preparam para, em mais uma absurda originalidade portuguesa, tornarem o nosso país no primeiro onde a existência de pobreza passará a ser um crime imputável a quem for Governo.

 

As boas intenções são muito perigosas em política, e mais perigosa ainda é a ideia de que tudo é responsabilidade de quem é Governo. Mas, apesar de a experiência nos ter mostrado que o Estado deve limitar a sua intervenção à criação de condições para que todos tenham uma oportunidade e um nível mínimo de segurança, devendo abster-se de maiores interferências no destino dos indivíduos, a verdade é que ainda continua a ser popular a ideia de um Estado - e um Governo - omnipotente e omnisciente.

 

A lei que a AR vai aprovar é um exemplo de como a falta de coragem e frontalidade dos políticos não lhes permite dizer não ao absurdo quando esse absurdo é, aparentemente, bem-intencionado. Recebida uma petição onde se sugeria que a pobreza devia passar a ser encarada como uma violação dos direitos humanos, os nossos deputados apressaram-se a dizer que tratarão de permitir que esse novo "direito humano" seja objecto de medidas visando a sua garantia. Já que, como dizia um socialista, "no campo teórico, todo o Direito violado é passível de sanção", então, como acrescentou uma bloquista, "vai ser possível exigir políticas públicas de combate à pobreza, porque a sua ausência configurará uma violação" da lei. Aflito mas com a visão bastante nublada, um deputado do PSD apenas conseguiu acrescentar que, então, será preciso "designar qual o limiar nacional de pobreza", acrescentando a medo que só haveria crime no caso de "uma regressão".

 

E se os nossos deputados tivessem um pouco de cultura política, de memória histórica e conhecimento do mundo, arrepiar-se-iam só com a sugestão de "criar" este "direito humano". Por isso vale a pena recordar-lhes alguns factos e enquadrar algumas ideias.

 

Começando pelos factos. O primeiro é português e recente: a altura em que, em Portugal, a pobreza cresceu mais foi no período de reajustamento de 1983/85, durante o Governo PS/PSD presidido por Mário Soares. Nessa altura, flutuaram muitas bandeiras negras pelo país, mas se o Governo de então não tivesse tido a coragem de tomar medidas draconianas teríamos entrado numa espiral de dívidas e sido incapazes de estar em condições de aderir à União Europeia. Contudo, se esta lei estivesse em vigor, Mário Soares e o então líder do PSD, Mota Pinto, poderiam ter sido perseguidos na Justiça - em vez disso, o primeiro acabaria por ser eleito Presidente da República: mandaram os eleitores, não os juízes.

 

O outro é um pouco mais antigo mas vale a pena recordá-lo, pois passarão amanhã 50 anos em que, formalmente, acabou o regime de racionamento no Reino Unido. Havia durado toda a II Guerra e havia sobrevivido quase mais dez anos. Se algum dos nossos deputados tiver lido a obra de Tony Judt Pós-guerra, saberá que esse regime foi especialmente duro para os britânicos no imediato pós-guerra, quando o seu Governo decidiu pedir-lhes mais sacrifícios para que fosse possível, vejam lá, alimentar os antigos inimigos, os alemães. Então se media a pobreza em libras, mas avaliava-se a subnutrição em calorias consumidas por dia. As senhas de racionamento implicaram então não apenas pobreza: traduziram-se em fome, muita fome. A ração diária dos britânicos chegou mesmo a ser inferior à dos derrotados alemães, mas os arquitectos dessa política e o estóico povo do Reino Unido mereceram o aplauso da História, não o opróbrio de serem levados perante um "tribunal de direitos humanos".

 

Finalmente era interessante que os nossos deputados tivessem consciência de que, mesmo querendo ser pioneiros, já houve quem lhes levasse a palma no que toca a julgar os alegados violadores dos direitos humanos. Referimo-nos ao Canadá, onde funciona, há quase 30 anos, um sistema de tribunais "de direitos humanos" que são presididos por funcionários públicos, praticam um contraditório elementar e que têm vindo a condenar, de forma sistemática, os que, bem ou mal, se afastam do "politicamente correcto". Muitos canadianos acreditam hoje que esses tribunais se estão a transformar, nas mãos da burocracia pública, num temível instrumento dirigido, por exemplo, contra a liberdade de opinião e expressão (uma rápida consulta via Net permite consultar algumas sentenças que confirmam este receio).

 

Mas os nossos deputados, especialmente os do arco não comunista, tinham obrigação de conhecer a diferença entre liberdades ou direitos negativos (que visam proteger o cidadão dos abusos do poder) e as liberdades ou direitos positivos (que implicam uma intervenção do poder que pode, no limite, colidir com direitos individuais dos cidadãos). Talvez lhes fosse útil, antes de votarem, lerem algumas páginas de Isaiah Berlin ou, se quiserem poupar tempo, passarem os olhos pelo apêndice ao capítulo IX de uma das últimas obras de Friederich Hayek, Law, Legislation and Liberty. Aí encontrarão uma interessante crítica à forma como se chegou à Declaração Universal dos Direitos do Homem (que completa esta ano seis décadas), em especial aos seus artigos 22.º, 23.º e 24.º. Neste último, por exemplo, prevê-se o "direito universal" a férias pagas, algo que só faz sentido se todos os homens fossem empregados, algo que é difícil de imaginar, pois, para existirem empregados, é necessário existirem também empregadores.

 

Tudo isto lhes permitiria chegar ao ponto essencial: "Se queremos que a maioria viva cada vez melhor, chegaremos mais depressa ao nosso objectivo não transformando-o numa lei, nem dando a todos o direito de perseguirem nos tribunais esse desiderato, mas dando a todos os incentivos necessários para que façam o seu melhor de forma a beneficiarem os outros". Isto porque é errado falar de "direitos quando o que está em causa são aspirações que só podem ser alcançadas numa base voluntária". As palavras são de Haiek e, mesmo tendo sido escritas em 1982, mantêm toda a sua actualidade.