Diário de Notícias - 28 de Maio

O que o País mais precisa

João César das Neves

Qual é a coisa de que Portugal mais necessita, neste momento? É sobre este tema desafiante que versa o recente relatório da Fundação Richard Zwentzerg sobre Portugal. Esta fundação internacional, dedicada aos estudos lusitanos, tem procurado investigar os aspectos mais profundos da nossa sociedade. 

Desta vez, ocupou-se de um assunto de grande actualidade e influência. (De referir, para evitar confusões verificadas no passado, que, como sempre, os relatórios da fundação não são publicados nem podem ser adquiridos, de forma nenhuma; a única maneira de lhes ter acesso é por meio destas notícias no DN.).

Ao procurar identificar o elemento que mais falta faz a Portugal agora, a Fundação Zwentzerg considerou vários factores. Investimentos, aumentos de produtividade, infra-estruturas, educação, competência profissional, liderança política, identidade nacional estiveram na lista final de candidatos a factor decisivo do nosso momento presente. Mas, depois de longos estudos e consideração ponderada por múltiplos especialistas, foi decidido que aquilo de que Portugal mais necessita é de uma outra coisa. Vergonha.

O relatório afirma que a nossa sociedade, educação, economia e política estão a passar por um momento de intensa pouca-vergonha. O desplante, a desfaçatez, o descaramento e a petulância estão a atingir níveis incríveis na situação portuguesa. Ora, tratando-se de um elemento básico da vida e natureza humanas, a falta de vergonha tem gravíssimas consequências, em todos os níveis nacionais.

A vergonha é o tributo que a maldade presta ao Bem. Na ausência de vergonha, o erro e a malícia campeiam infrenes. 

Para demonstrar esta sua análise da situação actual, o relatório cita vários factos, de múltiplos sectores. A infâmia do que se quer ensinar na "educação sexual escolar" das crianças, a vasta pornografia e devassa da vida privada nos programas de televisão, o endividamento fulgurante da sociedade e do Estado, a clara hipocrisia e falta de critério em muita da informação jornalística e o laxismo das novas leis aprovadas em múltiplos domínios. O texto afirma mesmo que alguns dos diplomas legais recentes são muito mais degradantes do que a publicidade. Também é referido o despudor dos grupos de pressão, políticos e dirigentes desportivos, admitindo a sua própria incompetência e corrupção sem qualquer constrangimento, e o descaramento de analistas e comentadores, defendendo posições aberrantes como se fossem naturais. 

O texto afirma mesmo que algum do comentário cultural é muito mais  pornográfico que os concursos televisivos. 

Mas o pior, segundo o volume, é o clima moral que se vive. Em Portugal, neste momento, as pessoas têm vergonha de ter vergonha. A atitude considerada normal é a de não se espantar com nada, para não parecer antiquado, retrógrado e conservador. Toda a gente se precipita apressadamente, para se mostrar sem tabus ou preconceitos, livre de princípios éticos e critérios morais. Mas, ao mesmo tempo, sente-se por todo o lado uma sensação de desconforto e desconfiança da situação. Realmente, a vergonha faz muita falta.

Para haver vergonha numa sociedade, são precisas duas coisas: primeiro, uma opinião pública com critérios claros e bem definidos; depois, um respeito geral pela opinião dos outros, seguindo, assim, esses critérios. Em Portugal, neste momento, o segundo elemento existe em excesso, pois toda a gente tem em grande conta a sua imagem perante os demais. O que falta são princípios éticos e critérios morais sólidos, que as pessoas sigam. O resultado é a desorientação ética, abrindo caminho ao abuso sem vergonha. 

A causa desta situação é traçada de forma bem vincada, no texto da fundação.

Segundo ele, a pouca-vergonha vem de um facto muito simples: o novo-riquismo.

Portugal acabou de chegar a um nível elevado de prosperidade e satisfação e está fascinado com isso. O clima de facilidade ingénua e de deslumbramento saloio é o que domina a atitude nacional. Os portugueses abriram-se com fervor às maravilhas da vida abastada. Naturalmente, nos momentos iniciais, tudo parece fácil, acessível e aceitável.

Pode parecer ridículo, mas os portugueses acham mesmo que, sendo membros da União Monetária na era da globalização, um país moderno e desenvolvido, lhes é permitido, sem consequências, cair na promiscuidade, nos excessos de consumo e no capricho governativo, esquecendo os princípios familiares, a prudência económica, as regras orçamentais, a dignidade humana, profissional e ideológica. Em breve, o País acordará do seu delírio, que já dura há uns anos e está a atingir níveis de paroxismo. Nessa altura, notará a falta que a vergonha faz.

Felizmente, conclui o relatório, ainda existem forças que se preocupam com o desenvolvimento nacional e com a integração do País no concerto das nações civilizadas. Para elas, o lema inspirador, agora, tem de ser "ao menos, haja vergonha"!

O professor universitário João César das Neves assina esta coluna à segunda-feira

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