O que o País mais precisa
João César das Neves
Qual é a coisa de que Portugal mais necessita, neste momento? É
sobre este tema desafiante que versa o recente relatório da Fundação
Richard Zwentzerg sobre Portugal. Esta fundação internacional,
dedicada aos estudos lusitanos, tem procurado investigar os aspectos
mais profundos da nossa sociedade.
Desta vez, ocupou-se de um assunto de grande actualidade e
influência. (De referir, para evitar confusões verificadas no passado,
que, como sempre, os relatórios da fundação não são publicados nem
podem ser adquiridos, de forma nenhuma; a única maneira de lhes ter
acesso é por meio destas notícias no DN.).
Ao procurar identificar o elemento que mais falta faz a Portugal
agora, a Fundação Zwentzerg considerou vários factores.
Investimentos, aumentos de produtividade, infra-estruturas, educação,
competência profissional, liderança política, identidade nacional
estiveram na lista final de candidatos a factor decisivo do nosso
momento presente. Mas, depois de longos estudos e consideração
ponderada por múltiplos especialistas, foi decidido que aquilo de que
Portugal mais necessita é de uma outra coisa. Vergonha.
O relatório afirma que a nossa sociedade, educação, economia e
política estão a passar por um momento de intensa pouca-vergonha. O
desplante, a desfaçatez, o descaramento e a petulância estão a
atingir níveis incríveis na situação portuguesa. Ora, tratando-se de
um elemento básico da vida e natureza humanas, a falta de vergonha tem
gravíssimas consequências, em todos os níveis nacionais.
A vergonha é o tributo que a maldade presta ao Bem. Na ausência de
vergonha, o erro e a malícia campeiam infrenes.
Para demonstrar esta sua análise da situação actual, o relatório
cita vários factos, de múltiplos sectores. A infâmia do que se quer
ensinar na "educação sexual escolar" das crianças, a vasta
pornografia e devassa da vida privada nos programas de televisão, o
endividamento fulgurante da sociedade e do Estado, a clara hipocrisia e
falta de critério em muita da informação jornalística e o laxismo
das novas leis aprovadas em múltiplos domínios. O texto afirma mesmo
que alguns dos diplomas legais recentes são muito mais degradantes do
que a publicidade. Também é referido o despudor dos grupos de
pressão, políticos e dirigentes desportivos, admitindo a sua própria
incompetência e corrupção sem qualquer constrangimento, e o
descaramento de analistas e comentadores, defendendo posições
aberrantes como se fossem naturais.
O texto afirma mesmo que algum do comentário cultural é muito mais
pornográfico que os concursos televisivos.
Mas o pior, segundo o volume, é o clima moral que se vive. Em
Portugal, neste momento, as pessoas têm vergonha de ter vergonha. A
atitude considerada normal é a de não se espantar com nada, para não
parecer antiquado, retrógrado e conservador. Toda a gente se precipita
apressadamente, para se mostrar sem tabus ou preconceitos, livre de
princípios éticos e critérios morais. Mas, ao mesmo tempo, sente-se
por todo o lado uma sensação de desconforto e desconfiança da
situação. Realmente, a vergonha faz muita falta.
Para haver vergonha numa sociedade, são precisas duas coisas:
primeiro, uma opinião pública com critérios claros e bem definidos;
depois, um respeito geral pela opinião dos outros, seguindo, assim,
esses critérios. Em Portugal, neste momento, o segundo elemento existe
em excesso, pois toda a gente tem em grande conta a sua imagem perante
os demais. O que falta são princípios éticos e critérios morais
sólidos, que as pessoas sigam. O resultado é a desorientação ética,
abrindo caminho ao abuso sem vergonha.
A causa desta situação é traçada de forma bem vincada, no texto
da fundação.
Segundo ele, a pouca-vergonha vem de um facto muito simples: o
novo-riquismo.
Portugal acabou de chegar a um nível elevado de prosperidade e
satisfação e está fascinado com isso. O clima de facilidade ingénua
e de deslumbramento saloio é o que domina a atitude nacional. Os
portugueses abriram-se com fervor às maravilhas da vida abastada.
Naturalmente, nos momentos iniciais, tudo parece fácil, acessível e
aceitável.
Pode parecer ridículo, mas os portugueses acham mesmo que, sendo
membros da União Monetária na era da globalização, um país moderno
e desenvolvido, lhes é permitido, sem consequências, cair na
promiscuidade, nos excessos de consumo e no capricho governativo,
esquecendo os princípios familiares, a prudência económica, as regras
orçamentais, a dignidade humana, profissional e ideológica. Em breve,
o País acordará do seu delírio, que já dura há uns anos e está a
atingir níveis de paroxismo. Nessa altura, notará a falta que a
vergonha faz.
Felizmente, conclui o relatório, ainda existem forças que se
preocupam com o desenvolvimento nacional e com a integração do País
no concerto das nações civilizadas. Para elas, o lema inspirador,
agora, tem de ser "ao menos, haja vergonha"!