Publico - 11 de Maio

Público e Privado
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Lembram-se do tempo em que a banca era pública, "do povo", "nossa"? Lembram-se do tempo em que só havia um operador de telecomunicações, naturalmente público? Lembram-se de quando todas as indústrias básicas eram do Estado, geravam enormes prejuízos mas eram consideradas "estratégicas"? Lembram-se de quando a maioria dos diários eram públicos, os seus directores eram escolhidos pelos governos e se jurava pelo pluralismo da informação? Lembram-se de quando apareceram as primeiras rádios privadas, então "piratas", e se prognosticou que vinha aí o cataclismo dos interesses comerciais?

E lembram-se de como tudo isto era justificado? Lembram-se de como se invocava a "soberania nacional", se previa que o público seria pior servido se algo mudasse e se jurava que só o Estado podia prestar os serviços públicos que essas empresas garantiam?

Não foi há muitos anos - a primeira privatização foi aí há uns doze anos -, mas a memória de muitos é curta e esqueceu como muitas dessas empresas públicas prestavam pior serviço aos seus clientes do que prestam as empresas privatizadas, em ambiente concorrencial. Assim como já se não lembra da arrogância dos antigos monopólios públicos, da forma como em nome do tal "serviço público" que prestavam mal, e de uma "soberania" que estavam longe de assegurar, iam delapidando o dinheiro dos contribuintes.

Tão curta é a memória dos povos que permite que se continue a alimentar a mistificação que a prestação de um "serviço público" - seja ele bancário, de telecomunicações, de transportes, de informação ou de televisão - só pode ser bem prestado se for prestado por um operador público. Tudo porque se operador for privado passa a ter como objectivo algo hediondo: o "lucro".

Apesar do muito que Portugal evoluiu com a banca privada, a indústria reprivatizada, por mais provas que existam de que os antigos diários públicos deram enormes saltos de qualidade após a sua privatização, a actual discussão sobre a RTP fez regressar os argumentos de sempre: os da defesa da soberania, os da garantia de pluralismo, os da superioridade do Estado como servidor de bens ao povo. É como nada se tivesse aprendido, como se o Estado só tivesse qualidades e as empresas apenas defeitos e intenções ocultas.

A verdade, porém, é outra. Primeiro: há muitas empresas que nunca farão sentido nem terão viabilidade se não tiverem como objecto e preocupação central o serviço público - entre elas contam-se as de comunicação social. Segundo: há bens públicos limitados, como espaço hertziano, cuja utilização tem de ser regulada pelo Estado que só deve conceder licenças de utilização - como as de televisão - em função de contrapartidas e contratos de "serviço público". Terceiro: que há domínios em que o "serviço público" existe investimento público, logo financiamento pelo Estado. Quarto: que mesmo esse "serviço público" financiado não tem de ser obrigatoriamente prestado por empresas do Estado, já que em simultâneo pode ser contractualizado com empresas privadas,

Tudo isto devia ser lembrado no actual debate sobre a RTP - só que isso não parece interessar a quem quer sobretudo fazer esquecer que a RTP não presta "serviço público" que se veja.

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