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Público - 3 Mar 03
Consumo de Antidepressivos Duplicou na Última Década
Por ALEXANDRA CAMPOS
Em 2001, venderam-se perto de quatro milhões de embalagens de antidepressivos
nas farmácias portuguesas - mais do dobro do que se consumia no início dos anos
90. E como é ponto assente que o desemprego funciona como factor desencadeador
da doença, prevê-se que num futuro próximo aumente o número de pessoas a
procurar os consultórios. Os médicos estão já a preparar-se. "Se houver guerra,
a situação será ainda pior", vai já adiantando o director clínico do Hospital
Júlio de Matos.
Os números são inquietantes: numa década, o consumo de antidepressivos mais do
duplicou em Portugal. De um total de cerca de 1, 8 milhões de embalagens
vendidas nas farmácias em 1992 passou-se para perto de 4 milhões em 2001. Um
"fado" que, todavia, não é exclusivamente português: o fenómeno, que afecta
sobretudo os países civilizados, tende a agravar-se a médio prazo.
A confirmarem-se as previsões da Organização Mundial de Saúde (OMS) estiverem
correctas, em 2020 a depressão vai constituir a segunda causa de incapacidade,
logo a seguir às doenças cardiovasculares. Actualmente é a quarta. Há mesmo quem
a classifique já como o "cancro do século XXI".
Sem estudos epidemiológicos, sem cálculos sobre a incidência e prevalência da
doença, não é fácil perceber a dimensão do fenómeno em Portugal. Sabe-se apenas
que, à semelhança do que acontece com os antidepressivos, os portugueses
consomem cada vez mais ansiolíticos, hipnóticos, sedativos, assistindo-se
igualmente a um crescimento, ainda que mais ligeiro, da venda de neurolépticos
(para o tratamento de doenças psiquiátricas mais graves, como a esquizofrenia e
a doença bipolar).
A par do crescimento sustentado na venda de psicotrópicos, a evolução verificada
nos últimos cinco anos revela um aumento galopante dos encargos do Serviço
Nacional de Saúde (SNS) com este tipo de fármacos. Basta ver que, enquanto o
número de embalagens vendidas tem subido a um ritmo médio de 600 mil a 700 mil
por ano (de 2000 para 2001 foi mesmo superior a um milhão), os custos para o SNS
mais do que duplicaram entre 1997 e 2001: passaram de quase 48 milhões de euros
para cerca de 99,5 - de acordo com dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Instituto
Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed). Neste total pesa sobretudo a
despesa com antidepressivos, querepresenta metade da factura.
Um cenário que, no entender de Luís Gamito, director clínico do Hospital de
Júlio de Matos, em Lisboa, significa que as depressões estão actualmente "melhor
diagnosticados" do que num passado recente e que há "uma melhoradequação da
prescrição". Antigamente, recorda, os médicos de família "usavam muito os
ansiolíticos", até por temerem os efeitos secundários dos antidepressivos.
Já Jaime Milheiro, presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental e director do
serviço de Psiquiatria do Hospital de Vila Nova de Gaia, acredita que
actualmente há "um excesso da utilização de medicamentos psicotrópicos". "A
imensa maioria das pessoas não conseguirá atingir as expectativas" criadas,
defende este psiquiatra que fala metaforicamente na "doença do herói",
perturbação emocional que resulta do desajustamento entre o que narcisicamente
se exige e o que de facto se atinge.
Menos radical, Luís Gamito reconhece que, nalguns casos, se existisse "outro
tipo de organização nos serviços de saúde", estes medicamentos poderiam ser
dispensados. Mas a verdade, nua e crua, é que a maior parte das vezes os
clínicos gerais "não têm tempo", sendo impelidos a dar respostas mais
imediatistas aos doentes.
Um terço não procura o médico
Em Portugal, o número de consultas psiquiátricas nos serviços públicos ronda os
60 mil a 70 mil novos casos por ano, exceptuando o atendimento de crianças,
toxicodependentes e o privado, referia já Jaime Milheiro num artigo integrado na
obra "Panorama da Cultura Portuguesa no Século XX". Se se pensar que o número
destas consultas rondava as 400 mil em 1998 (último ano em que o Instituto
Nacional de Estatística dispõe deste tipo de dados), actualmente o seu total
deverá aproximar-se das 700 mil por ano.
Mas Jaime Milheiro avança com outros dados preocupantes: "Um terço das pessoas
deprimidas nunca procura o médico" e "metade dos casos de depressão não são
diagnosticados na primeira consulta, surgindo mascarados em doenças orgânicas".
A única boa notícia é a de que os quadros psiquiátricos mais graves, como a
esquizofrenia e a doença bipolar, permanecem estabilizados. Com a vantagem de
que, agora, passaram a ser detectados e tratados mais cedo o que, conjugado com
"possibilidades terapêuticas radicalmente melhores, lhes confere um trajecto
bastante modificado".
O que faz aumentar o número de consultas são basicamente "os quadros clínicos da
chamada psiquiatria leve", normalmente tratados com medicamentos e/ou
psicoterapia, como as "descompensações depressivas e ansiosas", que traduzem
condições de vida degradadas, ritmos e pressões do quotidiano, situações de
desemprego, inadaptações profissionais". São, sintetiza Milheiro, "as custas do
estilo de vida".
A verdade é que, apesar dos milhões de páginas que estas temáticas ocupam em
jornais e livros, o desconhecimento da população relativamente às doenças
mentais continua a ser enorme. Nos anos 90, um inquérito realizado nos Estados
Unidos revelou a impressionante dimensão desta ignorância: 71 por cento dos
inquiridos atribuíam as doenças mentais a "fraqueza emocional" e 65 por cento a
uma infância traumática. Apenas 10 por cento acreditavam existir uma base
biológica envolvendo o cérebro.
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