Público - 19 Mar 03

Muitos dos Alunos de Lisboa Consideram-se Carenciados
Por FRANCISCO NEVES

Cerca de metade das crianças entrevistadas num estudo sobre o ensino básico da rede pública de Lisboa sente carências de vária ordem, que nem sempre têm a ver com o estatuto social dos pais.

As zonas oriental e sul de Lisboa - freguesias de Marvila, Charneca, Santa Justa, Santa Isabel e Santo Estêvão - são aquelas onde as crianças afirmam ter piores condições de vida. O contrário sucede na Lapa, Santo Condestável, Belém e S. Francisco Xavier.

Estes resultados foram ontem divulgados por uma equipa de investigadores do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e do Instituto de Apoio à Criança (IAC), que se debruçou sobre as condições de vida das crianças em Lisboa. Foram ouvidas 1859 das cerca de seis mil crianças que frequentam os 3º e 4º anos do ensino básico.

Mais de setenta por cento dos alunos dizem que o pai não teve emprego no último ano, 26% que vivem numa casa degradada (barraca ou em realojamento), 33% que apenas brincam na rua e 23,2% que ficam em casa durante as férias. Para muitos dos miúdos inquiridos a principal actividade de tempos livres é a catequese.

A noção de carência passou neste estudo - "inovador", por ter ouvido a criança enquanto cidadão e não por interposto filtro familiar - pela tentativa de aferir o grau de satisfação infantil em áreas como a quantidade de actividades de tempos livres ou de brinquedos e equipamentos de lazer, sem esquecer a alimentação. "Surgiram casos de pais com uma situação importante na sociedade portuguesa, por exemplo, em que o jantar normal dos filhos não passa de uma sanduíche, enquanto, por outro lado, surgiram pais com dificuldades económicas que tentam acompanhar os filhos nos tempos livres ou estar com eles ao fim-de-semana", descreveu Maria João Malho, do IAC, uma das autoras do estudo. O que quer dizer que a privação - embora muito ligada a factores como a etnia ou a condição financeira ou qualificação profissional dos pais - não é sinónimo de pobreza material. "Há famílias pobres que investem nas crianças", notou Amélia Bastos, do ISEG, a primeira portuguesa doutorada em pobreza infantil e outro dos autores do trabalho.

A divulgação dos primeiros dados deste trabalho reuniu no escola superior do Quelhas investigadores e profissionais da acção social, que deram contam do tipo de conclusões a que chegaram no seu contacto diário com crianças da cidade. Foi o caso de profissionais das comissões de protecção de menores de Lisboa, uma das quais, ligada ao Projecto Rua, apelaria ao alargamento deste tipo de trabalho a uma faixa etária de alto risco - entre os 12 e os 16 anos - que não é possível encontrar nas escolas, mas em centros comerciais ou em locais mais tristes. É que, disse, "entre 2000 e 2001 o absentismo escolar disparou em flecha e essas crianças estão a engrossar redes de prostituição infantil e de tráfico de droga. O seu recrutamento está a fazer-se entre os que têm menos de 12 anos, de modo a fugir-se à justiça", denunciou. Uma professora presente na sessão, há 17 anos a leccionar em Marvila, falou da sensação que tem de que a saúde mental das crianças "é cada vez mais alarmante", sugerindo investigação nesse campo.

O estudo "Condições de vida das crianças na cidade de Lisboa" foi elaborado por Amélia Bastos, Graça Leão, José Passos e Maria João Malho e teve a colaboração de 82 dos 107 estabelecimentos de ensino básico da cidade. Os seus autores gostariam de alargar o âmbito etário e geográfico do trabalho, e nesse sentido foram ontem prometidas colaborações futuras, nomeadamente por parte da Câmara de Lisboa, uma das entidades que cooperou nos trabalhos. Outras foram, por exemplo, a Carris e o Metropolitano, que forneceram livre-trânsitos aos voluntários encarregues das entrevistas. Segundo Amélia Bastos ainda haverá muito que fazer nesta área, já que "são diminutas as bases de dados sobre crianças", mal se conhecendo como vivem realmente.

Maria João Malho

Co-autora do estudo "Condições de vida das crianças na cidade de Lisboa"
 

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