Diário de Notícias - 14 Mar 03

A enfermeira Adelaide
FRANCISCO MANGAS Jornalista

Emigração é uma palavra bem conhecida dos portugueses. Uma palavra com tristeza por dentro: o «e» inicial indica movimento para o exterior, partida forçada da nossa terra por razões de sobrevivência. Uma palavra, bem vistas as coisas, histórica. Os portugueses, afinal, sempre emigraram. Mesmo quando essa viagem tinha como destino parcelas longínquas do Império. Depois do cheiro da canela, que o reino quase despovoava, surgiu o imenso e fértil Brasil, África. E depois, mais tarde, o salto para a Europa, carente de mão-de-obra amansada e barata.

Quantas aldeias definharam por via desse trágico vocábulo? Quantos passadores sem escrúpulos _ portugueses, claro _ engordaram na miséria de compatriotas desesperados? Dar o salto. Dar o salto, sim, para o desconhecido.

Hoje, os portugueses, subitamente, descobrem que a palavra pode escrever-se com «i». E, nessa maneira de grafar, também afinal existe tristeza e desespero por dentro. É um «i» que empurra pessoas de outras geografias, tocadas pela penúria, para dentro do nosso País. O acolhimento, em muitos casos, não tem sido o mais civilizado. O sonho de uma vida melhor, não raro, transforma-se em terrível pesadelo. Em exploração anacrónica, verdadeiramente muita próxima da escravatura.

Este problema, que envergonha qualquer Estado democrático, não passou despercebido ao Presidente da República. Sem grandes alaridos, Jorge Sampaio quis conhecer a realidade da imigração e das minorias étnicas. Dedicou-lhe uma presidência aberta: ouviu queixas, ficou feliz com alguns exemplos de «boas práticas». Concedeu a dignidade necessária, justa, que um país de emigrantes deve dispensar à questão da imigração.

Depois de visitar um bairro social em Gaia, onde várias famílias ciganas partilham o espaço com outros portugueses, o Presidente da República lembrou: «Não podemos olhar para a nossa realidade sempre com tristeza.» A realidade transforma-se. A realidade somos nós que a fazemos, ou a ignoramos. Ou a toleramos.

No bairro de Gaia, a enfermeira Adelaide _ na sede do rancho folclórico que dirige _ todas as tardes apoia os estudantes nos trabalhos de casa. Lançou cursos de alfabetização, e os seus solidários ensinamentos estendem-se ainda a áreas como o croché e a culinária. A enfermeira Adelaide, que Jorge Sampaio ouviu e elogiou o trabalho, sabe que não vai mudar o mundo. Mas terá, por certo, a certeza de que a realidade é transportável _ lentamente, com pequenos gestos, com pequeninas dádivas.

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