Correio da Manhã - 23 Mar 03

 

Margarida Gonçalves Neto

“A FAMÍLIA ESTÁ EM CRISE”

 A Coordenadora Nacional Para os Assuntos da Família acredita que não há comparação entre casamentos e uniões de facto.  Habituada a lidar com casais que se agridem, diz que é pena, mas a violência é uma espécie de herança familiar

 Texto de Sofia Rato e Fotos de Natália Ferraz

 Margarida Neto é psiquiatra e trabalha essencialmente com doentes alcoólicos (terapia familiar). Em Janeiro último foi convidada por Durão Barroso para ocupar o cargo de Coordenadora Nacional dos Assuntos da Família. Mantém a sua actividade, embora de forma reduzida, como psiquiatra, e desenvolve o seu trabalho na Casa de Saúde do Telhal, em Lisboa. Um dos objectivos da ‘sua’ coordenação é a constituição do Observatório da Família, que surgirá após a reunião agendada para 15 de Maio (Dia Internacional da Família).

 Como é que uma psiquiatra encara o desafio de coordenar os assuntos da família a nível nacional?

Sinto-me optimista porque creio que há uma enorme vontade da parte das pessoas em colaborarem na valorização da ideia de família que, como se sabe, está em crise. A dificuldade é entrar nos ritmos da Administração Pública, mas está tudo a correr bem.

Uma das preocupações desta coordenação é o acompanhamento de casais em crise.

Uma das nossas áreas de preocupação é a existência de mais serviços que se ocupem da mediação (quando o casal já está decidido a divorciar-se), mas também da fase anterior, de aconselhamento conjugal. Herdámos da Comissão Nacional da Família protocolos com algumas autarquias (Montijo, Cascais, Oeiras, Sintra e Vila Franca). Ou seja, além de nós, termos aqui estas câmaras que possuem gabinetes de mediação.

Se um casal está determinado em divorciar-se, o que faz exactamente um gabinete de mediação?

Num casal em ruptura existe agressividade e sofrimento para cada um dos membros e para as crianças. A mediação funciona como uma ajuda na gestão daquele conflito familiar. Há dez anos que existe um gabinete de mediação com um protocolo entre o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados.  É preciso ampliá-los.

Que outros objectivos tem esta coordenação?

A formação de pais, a área de defesa da vida e ajuda às mulheres grávidas em dificuldade e, obviamente, a transversalidade para que todas as políticas que sejam definidas tenham como critério assente a família - desde o Ministério das Finanças até ao Ministério da Cultura. Para nós, a família não é uma coisa gira mas uma ideia vital e que é preciso defender. Quando a família não funciona é mau para as pessoas, em todos os sentidos. O divórcio é a segunda maior causa de ‘stress’ na vida.

Somos um dos países europeus com maior  taxa de divórcios.

Exactamente, mas o facto de haver muitos divórcios não significa que seja fácil para as pessoas divorciarem-se. Há que saber responder a algumas questões: Porque é que é difícil manter a família ou a vida do casal? O que é que se passa? O aumento dos divórcios deve-nos preocupar? O que é que corre mal na vida do homem e da mulher? É natural haver muitos divórcios?

Tem dados em relação às uniões de facto?

Ainda não. Pode ser polémico o que vou dizer mas, quando se investigar os casais em união de facto, perceber-se-à que a taxa das uniões de facto que terminam em ruptura é superior à dos casamentos.

Muitas pessoas que vivem em união de facto anos seguidos, e felizes, a partir do momento em que se casam entram em ruptura. Porquê?

É ao contrário. Sabe que a união de facto não é igual a um casamento.

Apenas em termos legais.

Não penso assim. O casamento aumenta o nível de compromisso em todos os níveis. Normalmente, as pessoas que vivem em união de facto casam quando decidem ter um filho ou depois da criança nascer. É uma forma de comprometer mais a família.

É casada há quantos anos?

Casei-me em 1988 e tenho dois filhos pequenos. (risos) Vai-me perguntar como é que concilio a minha vida profissional e familiar?

Então, na sua opinião, um casal que esteja casado civil ou religiosamente tem um grau de compromisso maior?

Sim, aumenta o grau de compromisso e isso é um sinal claro da aposta na estabilidade. As pessoas normalmente decidem viver juntas para “ver se dá” e depois ou casam, ou não. Porque é que se decide não casar? Cada um saberá. O casamento aumenta o grau de obrigações ao nível do que a pessoa tem que fazer, mas também ao nível dos deveres em relação aos filhos e à assistência à família no caso de divórcio.

Mas hoje os filhos ficam sempre protegidos, independentemente dos pais serem ou não casados. Não há filhos de pais incógnitos, o progenitor que não ficar com os filhos é obrigado a dar uma pensão de alimentos e tem o direito de acompanhar o seu crescimento.

Sim, os filhos ficam protegidos, mas os conjugues nem sempre. Precisamente porque não existe o dever de assistência nas uniões de facto. Não estou a falar de afecto, nem sequer posso discutir se há mais ou menos amor nos casamentos ou nas uniões, estou a falar em termos processuais.

O novo código laboral confere cinco dias úteis (pagos na íntegra) aos pais após o nascimento dos filhos mas a realidade é que nem sempre acontece o que está previsto na lei. O ‘controle’ só pode ser feito através de denúncias.

A nossa obrigação enquanto cidadãos é denunciar estes casos. Se uma mulher está grávida e é despedida, se uma empresa pressiona um trabalhador a não gozar os seus cinco dias úteis a seguir ao nascimento de um filho, está a cometer um crime. Tem que ser normal e desejado por todos nós que um pai fique em casa quando nasce um filho e, nesse sentido, a Comunicação Social tem um papel importante de sensibilização. É o vosso trabalho.

Antes de mais, é uma questão de mentalidade.

Eu sei, mas todos temos que ter o nosso contribuito e falar destas coisas. Este era um Direito proclamado mas que não existia nem estava regulamentado. É obrigatório, ou seja, o pai não pode optar por gozar estes dias ou não, nem trocá-los por férias, folgas ou remunerações. O homem pode ir para a taberna e a segurança social vai pagar os copos mas também não o podemos obrigar a ir para casa mudar as fraldas do bebé. Esta possibilidade dele estar em casa é uma medida de igualdade porque a mulher não vai estar sozinha em casa a cuidar do filho. Num país pobre, o Estado paga na íntegra cinco dias aos trabalhadores e obriga-os a estar em casa. Isto é bom.

Se a prioridade desta coordenação é valorizar a família e fomentá-la, incluindo a natalidade, há coisas contraditórias neste Código. Imagine um casal jovem cujo contrato de trabalho pode ser renovado seis vezes, enquanto não forem efectivos numa empresa dificilmente fazem um empréstimo bancário, casam-se ou têm filhos...

A explicação não é o Código de Trabalho mas sim a dificuldade das empresas em manterem-se neste momento em Portugal. O que é preciso assegurar é um trabalho, as pessoas têm que ter trabalho e o que protege as famílias é a estabilidade das empresas.

Acredita que a estabilidade das empresas protege as famílias?

Sim, a vitalidade empresarial confere estabilidade às famílias.

Mas, se as empresas estão em crise...

Mas não podemos pensar unicamente no momento actual, neste ano de 2003 em que a crise dificulta as coisas e faz com que muitos projectos não possam andar. É uma questão pontual, ou seja, estamos a viver um ciclo e chegámos ao nosso limite.

Ou seja, estamos no fundo do poço mas a verdade é que ainda nos podemos ‘afundar’ mais. Sobretudo neste clima de guerra.

Sim, podemos, mas temos que pensar que vamos superar esta enorme crise e que a vida pode e deve regressar à ‘normalidade’.

Da sua experiência como psiquiatra, quais são as situações ‘limite’ entre os casais?

A minha memória de casos clínicos e de situações é imensa e é difícil identificar todos. Por exemplo, nas famílias dos doentes alcoólicos existe uma enorme dose de agressividade e, obviamente, violência doméstica. Mas também existe o outro lado: as mulheres têm um enorme poder de encaixe e ‘aturam’ anos a fio maridos alcoólicos, ajudam-nos no tratamento e nunca perdem a esperança de que o marido recupere e o casamento se mantenha.

O que é que mais conduz à violência doméstica, além do alcoolismo?

Em primeiro lugar a desigualdade, ou seja, a questão do ‘eu posso bater’. Mas também a permissividade de quem é batido e, sobretudo, o passado. Como psiquiatra, acredito que o passado do agressor está muito presente nas razões e na forma descontrolada como bate na mulher (ou vice-versa). Geralmente, quando vamos ao passado de um homem agresssor, ele ou viu o pai bater na mãe, ou foi vítima de maus tratos.

Ou seja, a explicação reside essencialmente no passado?

Alguma está, de facto, no passado, mas também está no carácter e na personalidade do agressor, nas circunstâncias de vida e, obviamente, na personalidade de quem é agredido. Em Portugal, a grande causa da violência doméstica é o alcoolismo.

Um flagelo transversal na sociedade.

Há quem beba whisky e quem beba na taberna. Faz-me mais impressão o requinte do bebedor fino e a forma como bate na mulher do que o homem que chega a casa com o coração nas mãos.

A verdade é que a violência doméstica existe.

Julgo que há mulheres que não se deixam bater. O facto de uma mulher se deixar agredir é preocupante; é um sinal de disfunção. Deixar-se bater implica ter uma noção muito fraca de si própria. Sei que é uma visão muito pouco feminina mas, na realidade, uma mulher que se deixa bater tem uma disfunção (está deprimida, tem baixa auto-estima...).

E o medo que elas sentem?

O medo é uma circunstância absolutamente relevante e o passado também. Infelizmente, quando se pergunta a um casal se está tudo bem entre eles, muitas vezes ouve-se a mulher dizer: “Sim, estamos bem. Ele não me bate nem nada...”. Estas respostas são culturais e é lamentável que as mulheres expliquem que a relação está bem porque o marido não lhes bate.

Como é que se explica a pedofilia e o abuso sexual nas famílias?

Esta rede (Casa Pia) preversa, mafiosa e comercial comporta um grau de distorção da sexualidade a que nós, psiquaitras, não estávamos habituados. Em termos clínicos, a pedofilia é um caso recente porque os pedófilos não se queixam. O Bibi não foi a nenhum psiquiatra queixar-se.

E o abuso sexual nas famílias?

A maior parte dos abusos sexuais nas famílias não são incestuosos. Ou seja, não são os pais que abusam das filhas e isto está estudado. São tios próximos, vizinhos, amigos da família mas não o pai biológico ou a mãe biológica (é horrível mas também há mães que abusam dos filhos).

Mas o que é que leva as pessoas a abusarem sexualmente de menores?

Infelizmente, é a proximidade. Isso conduz a uma sexualidade mais fácil e que, geralmente, está enquadrada em contextos de álcool, droga e dificuldades de vida. Algumas mulheres sabem que os maridos ou companheiros abusam das suas filhas e deixam passar. Fecham os olhos, por medo, por vergonha, por tudo. Dentro do horror que isto tudo é, e se for possível valorar, para mim o caso mais grave é o do pai que abusa do filho. É uma distorção enorme da sexualidade, da relação pai-filho e é anti-natura.

 

 DESTAQUES

O homem pode ir para a taberna e a segurança social vai pagar os copos mas também não o podemos obrigar a ir para casa mudar as fraldas

 “Ele não me bate nem nada” (...) É lamentável que as mulheres expliquem que a relação está bem porque o marido não lhes bate

 _________________________________________________

(Caixa)

 O pai de hoje é um homem psicologicamente mais disponível para ter uma relação mais próxima com os filhos do que o da geração anterior. O pai ‘moderno’ não é tão autoritário e castigador

 Apesar da mudança psicológica no casal, ainda há coisas que são só as mães que fazem. Mas eu faço uma pergunta difícil: será que as mulheres deixam os homens ir às reuniões de pais? Será que as mães querem perder o poder e as zonas de influência que tinham?

 O nosso passado ‘ganha’ sempre. Por exemplo, quando decidimos que vamos ser o oposto dos nosso pai, acabamos por nos tornar iguais a ele

 Há pouco tempo apareceu-me um caso clínico que me marcou. Um casal de classe alta em que ela é alcoólica e o marido não a quer aturar (a vergonha de um homem que tem uma mulher alcoólica é muito superior à da mulher cujo marido bebe). Separaram-se e eu perguntei-lhe pelos filhos. A resposta dele foi: “Pais há muitos, mãe há só uma. As crianças ficam com ela”

 O casal deve saber gerir as competências de cada um. Por exemplo, eu não sou capaz de preencher o papel do IRS, mas faço outras coisas

 

[anterior]