Público - 12 Mar 03

A Propósito da Transparência
Por MANUEL QUEIRÓ

Deixou de ser pensável o retorno aos tempos em que se preferia a ausência de notícias quando elas eram más, e convém perceber que a confiança deixou de poder assentar no segredo

De cada vez que irrompe mais um escândalo na sociedade portuguesa vem-me irresistivelmente à memória a queda da ponte de Castelo de Paiva. Como se trata muitas vezes de revelações que envolvem anomalias no funcionamento de entidades essenciais, quer públicas quer privadas (produção de alimentos, autarquias, Direcção de Viação, GNR, hospitais, etc.), ocorre-me um paralelo com as causas apuradas daquela tragédia. Tem presente o leitor que os pilares daquela ponte se viram subitamente "descalços" porque o leito de areia, em que eles supostamente estariam enterrados, tinha descido vários metros ao longo de anos sem que ninguém se tivesse apercebido disso. Na altura fui assaltado pela imagem de um país em que aquilo que de mais grave acontece, e que um dia nos vai mergulhar na pior das situações, está longe das vistas e das preocupações da maior parte das pessoas.

Essa imagem persiste na minha memória e não me deixa encarar com ligeireza a série de revelações chocantes que desde há meses têm sido expostas aos portugueses. O facto de muitas delas provirem de iniciativas oficiais faz-me aliás ter a esperança de que não se trate de ocorrências ocasionais. Se elas anunciarem, como espero, uma nova prática de transparência em face das crescentes exigências da opinião pública, só me resta esperar que ela se instale duradouramente e que venha a provocar efeitos positivos.

Há que reconhecer que ainda não é isso que acontece inteiramente. Não me refiro às correcções no funcionamento dos serviços e à responsabilização dos envolvidos, porque a norma tem sido essa, e ainda bem. Refiro-me à consciencialização colectiva de que algo tem de mudar no funcionamento da comunidade portuguesa e de que essa mudança diz respeito a toda a gente. E é óbvio que essa consciencialização ainda encontra vários obstáculos.

É o caso de um sensacionalismo mediático que em Portugal impera e que tende sempre a provocar o maior choque possível, em simbiose com um aproveitamento político que procura navegar nas mesmas águas. Veja-se a recente fiscalização da carne de aves e o esforço de alguns em acentuar o alarme (chegou-se a profetizar o embargo europeu a esse produto), e perceba-se que a oposição também tem de aprender a retirar efeitos úteis do esforço pela transparência. Até porque deixou de ser pensável o retorno aos tempos em que se preferia a ausência de notícias quando elas eram más, e convém perceber que a confiança deixou de poder assentar no segredo.

Inevitável talvez seja também que à surpresa das revelações se suceda a ânsia de tudo saber, como se a indiferença meio comprometida do passado pudesse ser de alguma forma esconjurada por um processo de visibilidade radical, onde a prudência fica sem argumentos perante um ímpeto em que os sentimentos mórbidos não estão completamente ausentes. É uma caminhada que se alimenta a si própria, e em que o excesso e a gratuitidade podem conduzir a um novo tipo de indiferença, com o risco de se anular o efeito útil de qualquer busca da verdade.

Curioso é constatar que esta exigência de transparência radical foi ferozmente contrariada aquando da exposição do estado deplorável das nossas contas públicas, naquele que se pode considerar o maior acto de transparência praticado desde que o actual Governo tomou posse. Não somente o maior mas também o mais importante, porque nos revela a nossa mais profunda debilidade, aquela que se traduziu na dupla incapacidade de construir uma economia competitiva e de ao mesmo tempo recusar o aumento da factura na resposta às exigências de gastar sempre mais. Pois foi aí, no domínio em que os portugueses mais se viram confrontados consigo próprios e com a necessidade de mudar de vida, que a vontade de tudo saber se deixou sobrepor pela conveniência de tudo negar. Por algum tempo apenas, estou em crer, porque a reacção não foi unânime nem poderá ser eterna.

É aliás nesta matéria que a imagem do lento esvaziar do leito do rio sob a ponte melhor se pode aplicar. A brutal diminuição da margem de manobra do Estado em intervir na recuperação da economia fez com que o crescimento do nosso défice público ultrapassasse em muito um mero exercício de contabilidade, e passasse a constituir a exacta medida do estado aflitivo da nossa situação. Mas essa verdade foi muito tempo mantida dentro dos estreitos limites dos círculos políticos e económicos, e a resistência ao fim dessa ocultação provocou o choque que se sabe, de resto não totalmente inocente. As desilusões de alguma comunicação com a mudança de Governo, bem como a fuga às responsabilidades por parte de alguns dos anteriores responsáveis políticos, conjugaram-se com a desabituação às más notícias por anos de discurso anestesiante e transferiram para o campo da pura manobra política o que na sua essência mais não era do que uma inadiável chamada à realidade.

Portugal encontra-se num ponto em que a dificuldade da situação torna difícil a mudança que ela própria exige. Chegados a esse extremo não havia alternativa à exposição sem subterfúgios, por brutal que fosse, da realidade tal como ela se apresenta. Não existe porventura maior exigência de transparência na vida actual do nosso país, e não é arriscado dizer que a consciencialização que ela deve provocar é a melhor forma de mobilizar as vontades para as transformações que se impõem.

P.S. - O primeiro-ministro disse há três semanas no Parlamento que, se não fosse possível evitar a guerra, Portugal não participaria mas não seria neutral, ficando do lado dos Estados Unidos e cumprindo as suas obrigações de aliado. Os socialistas discordaram, de uma forma desunida e pouco convicta, aliás. Perante a repetição exacta dessa afirmação, os dirigentes socialistas tentaram agora empurrar o Presidente da República para uma crise constitucional...

Com um PS assim, o Bloco de Esquerda até é capaz de nem ser preciso...

[anterior]