Público - 5 de Novembro

EDUCAR OS FILHOS. DIREITO DE QUEM?
por
Mário Pinto


1. Veio há semanas noticiado (Público, 5-10) que o Bloco de Esquerda apresentou um requerimento parlamentar, perguntando ao Governo «com que fundamento foi atribuído o financiamento público (a uma) acção de formação» de professores, destinada a prepará-los para serem capazes de explicar «a posição da Igreja Católica sobre a homossexualidade» e sobre outros aspectos da sexualidade. Segundo a notícia, «Bloco acusa o Estado Português de financiar programas com carácter confessional». 
Não sei se acusa ou não acusa. Agora o que sei é que os professores das escolas públicas, que irão falar aos seus alunos sobre sexualidade, vão de certeza absoluta ensinar, explícita ou implicitamente, ética e moral sexual. Os especialistas em questões de educação dizem (e todos nós claramente entendemos) que a cada currículo explícito está indissoluvelmente ligado um outro currículo implícito, ou oculto. E que toda a acção pedagógica veicula valores e opções, explícita ou implicitamente, dura ou suavemente. Portanto, não há uma educação sexual neutra, isenta de valores. A orientação de um ensino que opta por valorar igualmente todas as orientações sexuais já é um ensino orientado por valores. O próprio Ministério da Educação reconhece (e uso as palavras publicadas) «a importância da educação sexual aos níveis afectivo, cognitivo, social e ético da educação sexual» (cfr. sítio do ME).
Pois bem: quais são então, nesta matéria, os valores preferidos na escola pública portuguesa? Cito, a propósito, Daniel Sampaio, que, em recente artigo (de 14-10, Not. Mag.), reafirma a sua opinião, escrevendo: «tive a ocasião de afirmar, no início do ano passado, que não iríamos a lado nenhum com um manual tão fraco, sem o apoio dos pais, sem formação dos professores». Ora bem, creio que não terei, nesta complexa matéria da educação sexual nas escolas públicas, uma opinião concordante com Daniel Sampaio. Mas condivido com ele esta tese da necessidade da intervenção dos pais. Prefiro contudo dizer concordância dos pais, e não apoio dos pais, para que se não pense que os pais podem apoiar ou não, e tanto basta. É que, na verdade, a escola pública não pode expropriar o direito de os pais educarem os seus filhos. Só pode colaborar com os pais. Não digo isto como opinião minha; defendo, aqui, direitos fundamentais a cujo respeito Portugal está obrigado.
2. É aos pais que pertence o direito prioritário de escolher o género de educação para os seus filhos ‹ é isto o que está expressamente escrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Transcrevo o parágrafo 3 do artigo 26º desta Carta, que diz assim: «os pais têm um direito prioritário de escolher a espécie de educação que será dada aos seus filhos». A nossa Constituição também diz que «os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos» (n. 5 do art. 36º). E acrescenta que «incumbe (...) ao Estado cooperar com os pais na educação dos filhos» (al. c) do art. 67º). Cooperar com os pais é muito diferente de substituir os pais e serem os pais a cooperar com a escola do Estado. Deve ainda recordar-se que o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais reforça a prioridade dos direitos de educação dos pais, pelo cuidado que mostrou em proteger certos aspectos dessa liberdade. Designadamente, a escolha de uma escola não pública e a liberdade de educação religiosa. Com efeito, o n. 3 do art. 13º impõe o seguinte: «os Estados partes no Pacto (entre os quais Portugal) comprometem-se a respeitar a liberdade de os pais (ou os tutores legais) escolherem, para os seus filhos (ou pupilos), escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas (...); e comprometem-se ainda a respeitar (mesmo nas escolas públicas) a vontade dos pais de que os seus filhos recebam a educação religiosa concordante com as suas convicções». 
Esta questão da prioridade do direito dos pais na educação dos seus filhos é tão melindrosa que a Constituição Portuguesa achou que era preciso dizer o seguinte: «os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial» (n. 6 do art. 36º). Claro que esta inseparabilidade inclui o direito de educar.
3. Muito bem. Interroguemo-nos então seriamente: a educação sexual em escola pública, que se está introduzindo, reconhece e respeita honestamente esta ordem de coisas? Toda a gente sabe que não. O Esatdo regula esta matéria segundo uma orientação politicamente definida.
Mas, se assim é, quais são então as orientações do Estado para as escolas públicas? Todas as orientações de comportamento sexual são igualmente legítimas para serem esclarecidas aos alunos, menos as cristãs porque adjectivadas de confessionais, como parece entender o Bloco de Esquerda? As concepções do mundo e da vida, da ética e dos costumes, ficam excluídas do pluralismo da escola pública se forem confessionais? Há uma posição oficial, a este respeito? Se há, o professor segue-a? Ou não há nenhuma orientação? E, não havendo, o professor é então livre de veicular, ainda que subliminarmente, a sua opinião? Ou todas as opiniões menos as confessionais? Os pais das crianças sabem qual é a orientação (explícita ou implícita) de cada um dos professores dos seus filhos? E se quiserem saber, como conseguem? Basta perguntar? E obtêm resposta?
Poderão talvez retorquir-me que os pais portugueses de facto não educam os seus filhos, e que delegam no Estado. Responderei que isso é o que falta provar, visto que uma tal delegação terá sempre de ser individual e caso por caso, uma vez que cada pai é senhor do seu direito, e ninguém pode delegar por ele. Sem esta delegação caso por caso, só por decisão judicial o Estado pode separar os filhos dos pais que se manifestem contra a orientação das escolas públicas. 
E acrescentaria que ainda na hipótese de demissão colectiva cultural dos pais, a função do Estado não é a de substitui-los; é, sim, a de cooperar com eles, desde logo estimulando-os e apoiando-os a cumprirem os seus deveres. É o que lhe manda a Constituição: cooperar com os pais e apoiar as famílias (art. 67º citado). Mas a verdade é que o Estado português desde há muito que prefere a escola pública para educar os filhos dos «seus» cidadãos. Desde o iluminismo, passando pela república laicista e jacobina, depois pelo Estado-Novo nacionalista, até à Constituição socialista de 1976. Claro que há passos andados para reverter este caminho. Mas são passos adiante e atrás. 
Se o Estado português financiasse o ensino a todos por igual, nas escolas públicas como nas privadas, e deixasse aos pais a escolha livre da educação para os seus filhos, como manda a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição Portuguesa, não fazendo questão política de educar os filhos dos pais portugueses segundo uma única cartilha, já a educação sexual não seria questão do Bloco de Esquerda nem de quaisquer outros partidos. Seria apenas, como deveria ser, questão da livre escolha dos cidadãos.

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