Público - 4
Nov 05
O imenso
falhanço
José Manuel Fernandes
O fracasso da "integração" reside nos equívocos do
politicamente correcto e na total confusão de valores
A política irresponsável tem sempre
custos pesados. As promessas por cumprir regressam
sempre como boomerangs que não só atingem quem as
propagou como estilhaçam as estruturas sociais e
políticas em que se baseia o contrato de confiança de
qualquer democracia.
Há mais de dez anos, quando foi eleito pela primeira vez
Presidente da República Francesa, Chirac ganhou
prometendo o combate à "fractura social". As suas
decisões erráticas e o seu inesgotável oportunismo
político não têm feito mais do que agravá-la. Pior: se
algum dia o mal-estar francês pode ser explicado pela
existência de uma "fractura social" - o que não deixaria
de constituir uma paradoxal contradição com o discurso
gaulês sobre o seu exemplar "modelo social"... -, hoje
degenerou em tensões brutais que não apenas atiram
bairros inteiros (com a dimensão de cidades sem raízes
nem memória) para uma marginalidade pobre mas também os
excluem do espaço comum onde há leis a regular as
relações entre os cidadãos.
Os números impressionam. Desde o início do ano, foram
registados em França 70 mil incidentes de violência
urbana, incendiadas 28 mil viaturas e contabilizados 442
confrontos entre bandos de rua. Só no subúrbio onde
ocorreram os distúrbios mais graves, Seine-Saint-Denis,
nos arredores de Paris, são queimadas 20 a 40 viaturas
por noite e desde o início do ano houve 90.000 casos de
apedrejamento de patrulhas policiais.
Este estado de coisas corresponde a uma banalização da
violência que não pode - e sobretudo não deve - ser
explicada apenas pela "fractura social", por mais real
que seja a degradação das habitações sociais, por mais
elevados que sejam os índices de desemprego e por mais
difíceis que sejam as condições de vida dos habitantes.
O que se passa nesses bairros é mais grave e mais
complicado: remate para a dissolução das referências que
distinguem a convivência pacífica numa sociedade
civilizada da violência cultivada enquanto forma de
afirmação política, social e cultural.
Esses bairros são guetos? São. Mas porque se
transformaram em guetos: há vinte, trinta anos, eram
"cidades novas", generosamente construídas pelo Estado
para resgatar os imigrantes pobres dos bidonvilles.
Entretanto, os que fizeram pela vida partiram e vivem em
habitações que correspondem às suas ambições sociais.
Outros não o fizeram. Ficaram para trás, queixando-se,
desistindo, aceitando a marginalidade e convivendo com
ela. Por isso, para desgraça da França e por mais
impopular que seja assumi-lo, não foi a origem social ou
étnica que separou os que partiram dos que ficaram, mas
sim uns acreditarem que podiam ter sucesso nas nações
que os acolhiam e outros preferirem a marginalidade
mascarada de revolta social e desculpada pelo discurso
"compreensivo" de certas elites.
Querem um exemplo? Na mesma noite em que dois jovens
morreram electrocutados em circunstâncias que permanecem
nebulosas (mas de que logo se responsabilizou a
polícia), um homem de 50 anos era morto ao pontapé por
delinquentes perante a passividade de dezenas de
pessoas. O presidente da câmara local entendeu dever
acorrer ao funeral dos jovens, mas ignorou o da vítima
do banditismo. Este gesto contém uma clara mensagem
política que valoriza a suspeição, não provada, sobre um
eventual exagero da polícia, e desvaloriza o vandalismo
mais bárbaro.
O imenso falhanço da "integração" reside exactamente
nestes tipo de equívocos, nesta total confusão de
valores. Se se aceita e justifica os que vivem
desafiando a lei, acaba-se no caos. E se não se promovem
os valores da tolerância e do trabalho, acaba-se na
segregação. Pior só acrescentando um clima político
inquinado, como aquele que a França vive. Espere-se o
pior.