Diário de Notícias - 4
Nov 05
O ódio
Eduardo
Dâmaso
E m 1995 o realizador de cinema Mathieu Kassovitz contou-nos a história de Said,
Vinz e Hubert, três jovens de uma periferia parisiense que acorda numa manhã em
sobressalto devido às torturas sofridas por um jovem de 16 anos num
interrogatório policial. A história acaba mal. Agora, morreram dois jovens
electrocutados depois de uma acção policial e a pradaria urbana incendiou-se.
Esse belo e trágico filme intitulado O Ódio é uma crónica da permanente
guerra civil travada por jovens desintegrados, desempregados e empurrados para a
criminalidade com as forças policiais que podia ter sido feita dez anos antes.
Ele é apenas mais uma abordagem criativa desta tragédia francesa que antecipa
aquilo que um dia pode propagar-se a outros países.
O que está a passar-se em Paris já antes se passou. Paris é um permanente
regresso ao passado nesta matéria da violência urbana e também não é por acaso
que a França é um dos países europeus onde a extrema-direita fascista maior
expressão institucional tem. Há duas décadas que os governos franceses de
esquerda e de direita não conseguem dar respostas consequentes na integração das
vagas de emigrantes que entraram no país. Há duas décadas que a política
francesa oscila entre a defesa e a recusa, ambas radicais, de um modelo social
utilizado como arma de arremesso nas barricadas ideológicas de cada tribo. Há
duas décadas que a política francesa não sabe como enfrentar o crescimento
explosivo do desemprego, da criminalidade, do gigantismo imobiliário em bairros
dormitórios, horríveis e labirínticos, que cresceram nas periferias das grandes
cidades. Há duas décadas que jovens marginalizados pela crise económica e por
uma sociedade em crise de valores estão em guerra com forças policiais
abandonadas à sua própria sorte. Uns são a mesma carne do canhão, açulados como
cães ao ódio recíproco por um poder político irresponsável. Poder esse que tem,
agora, na cara do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, expoente de um
populismo light mas profundamente pirómano a quem alguns espíritos mais
entusiasmados com a suposta coragem das suas decisões já antecipam uma dimensão
de grande estadista, a maior evidência.
A única resposta que Sarkozy consegue dar é a da repressão pura. Nada
conseguirá, como nunca nenhum antes dele conseguiu. Nada se consegue neste campo
estigmatizando o protesto e instrumentalizando a polícia. Nada se consegue
desinvestindo na integração social ou entregando-o apenas à velha lógica
misericordiosa da piedade católica. O que se está a passar em França é uma
grande lição para todos, em particular para Portugal, onde as áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto caminham a passos largos para uma guetização
que poucos querem ver.