Diário de Notícias - 4 Nov 05

 

Tudo menos óbvio

João Miguel Tavares

Com a impossibilidade de realizar um referendo ao aborto antes de Novembro de 2006, a esquerda mais histérica desatou numa gritaria destrambelhada, exigindo a mudança da lei no Parlamento. Que o PCP defenda essa solução, é compreensível. Que o Bloco a exija, é previsível. Que as meninas do famoso "na minha barriga mando eu" a desejem, é inevitável. Agora, por mais voltas que dê à moleirinha, não percebo como é que alguém alheio a estas agremiações, provido de uma ideia de democracia e de um pingo de bom senso, pode sequer colocar a hipótese de alterar a lei do aborto sem um novo referendo.

Sócrates demorou a reagir, o que só lhe ficou mal, mas tomou a única decisão possível - esperar pelo referendo. Porque uma coisa é ser a favor da liberalização do aborto, opção perfeitamente legítima e defensável. Outra coisa, bem diferente, é recusar a complexidade do problema. No Público de domingo, Ana Sá Lopes - só para dar um exemplo - classificou a "despenalização" como "uma questão básica de direitos humanos". Ou seja, no seu entender, é uma questão que nem sequer chega a ser uma questão - é algo do domínio da evidência, tão óbvio quanto dar de comer a quem tem fome e dar de beber a quem tem sede. Esta atitude pode parecer muito progressista - aos meus olhos, é uma barbaridade.

Muitos dos que lutam pela despenalização agem como se liberalizar o aborto fosse uma causa equivalente à defesa da liberdade de expressão, da igualdade das mulheres ou da abolição da escravatura. Vão-me desculpar é preciso estar toldado por um espírito de cruzada e não ter a mínima noção das proporções. Talvez um feto não seja "vida". Talvez não seja uma pessoa nem tenha os seus direitos. Mas não é um tumor que deve evidentemente ser extraído se o seu portador assim o desejar. Digam tudo o que quiserem sobre o aborto. Tudo, menos que é uma questão básica. Tudo, menos que tem uma solução óbvia.

 

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