Público - 5 Nov 05
Tróia
Helena Matos
a entrevista que deu esta semana à revista Visão Mário
Soares classifica Medina Carreira como uma "Cassandra
lusitana". Os sucessivos avisos de Medina Carreira sobre
o incomportável peso do Estado na sociedade portuguesa e
sobre a não sustentabilidade da segurança social
transformaram-no, segundo Mário Soares, num "profeta da
desgraça". Mário Soares orgulha-se das suas leituras,
mas creio que a Ilíada e a Odisseia não serão as suas
leituras mais recentes, pois esqueceu o essencial:
esqueceu que Cassandra tinha razão. A maldição que sobre
ela fora lançada por Apolo fizera com que os seus avisos
nunca fossem tomados em conta. Mas Cassandra não se
enganava.
Não sei o que levou Mário Soares a recorrer à imagem de
Cassandra. Creio até que tentou emendar o exemplo,
referindo em seguida, na resposta aos jornalistas da
Visão, uma personagem queirosiana que, sem dúvida,
amenizava a alusão a Cassandra. Mas é de facto de
Cassandra que se trata. É de facto em Tróia que estamos.
A Europa é hoje uma cidade-Estado. Ciosa dos seus
privilégios, é-lhe indiferente o que acontece fora das
suas fronteiras. Todos os dias, seja nos assaltos às
valas de Ceuta, em pequenas embarcações ou a salto,
morre gente ao tentar passar as suas muralhas. No dia em
que na Espanha nasceu a futura rainha, no fundo duma
patera descobriu-se o cadáver dum bebé. E ninguém quis
saber sequer se era menino ou menina. Tal como ninguém
quis saber dos imigrantes que morreram queimados num
centro de detenção na Holanda... Desde que não entrem,
aceita-se tudo. Quando muito, mandam-se uns
altos-comissários e uns ministros que se mostram
chocados. Todos sabem que, para esta vergonha acabar,
era necessário que os cidadãos europeus aceitassem
perder privilégios; que, em primeiro lugar, se alterasse
a PAC; se deitassem abaixo barreiras alfandegárias. Mas
ensina a tragédia que os personagens, por mais avisados
que estejam, nunca dão ouvidos. Foi assim em Tróia. É
assim aqui. E, lá como cá, então como agora, haverá
sempre gente disposta a rir de Cassandra. Entretanto
perora-se contra a globalização, fazem-se concertos de
caridade e espera-se que esses homens vindos algures de
África, da Ásia, da América Latina... desapareçam.
Outra das características da cidade-Estado é a crença na
sua invencibilidade. Um culto desmesurado da sua
diferença. Da sua superioridade. Durante décadas, a
Europa deleitou-se com os relatos sobre o racismo nos
EUA. Por ironia do destino, na mesma semana em que os
norte-americanos prestavam as maiores homenagens a Rosa
Parks, Paris, a cidade da diferença europeia, era posta
a ferro e fogo por bandos que se identificam como
imigrantes. Assim, quando perante aqueles grupos que
incendeiam automóveis, espancam pessoas, destroem
habitações... Mário Soares, como afirmou na TVI, vê
trabalhadores em luta pelos seus direitos adquiridos,
está a manter-se coerente com uma das mais sólidas
crenças da cidade-Estado em que nos tornámos: a de que o
organograma das lutas sociais é passível de ser
transposto para as questões raciais, culturais e
religiosas. Sendo certo que, graças a homens como Mário
Soares, os europeus felizmente trocaram as barricadas do
proletariado pelas delícias do Estado social, não é
menos certo que sempre lhes pareceu exaltante que outros
povos, sobretudo se africanos, fossem protagonistas de
experiências a que eles mesmos liminarmente se recusaram
submeter. O caso português é, aliás, exemplar desta
duplicidade da cidade-Estado europeia: em 1975,
recusámos ser a Cuba da Europa, mas chamámos então e
chamamos hoje "libertação" aos acordos em que entregámos
a administração das ex-colónias a partidos totalitários.
Se fosse hoje, não seria assim? Claro que seria. A
cidade-Estado nunca muda. Apenas escolhe outros
protagonistas para ilustrarem o seu "export de
convicções": Arafat e Lula da Silva são algumas das mais
recentes actualizações desse ideário. A cidade-Estado
começa invariavelmente por subestimar as acusações de
corrupção, nepotismo e autoritarismo que lhes são
feitas. Em seguida recebe-os como grandes líderes.
Depois, quando a realidade se impõe, deixa-os cair e
parte de novo em busca do títere que longe, bem longe,
se preste a protagonizar os sonhos que diz que ainda não
morreram. E oficialmente o mundo continua na mesma. E
nós aqui no melhor dos mundos possíveis.
O vandalismo que varre os bairros periféricos de Paris
abala os pilares da Tróia em que nos tornámos. Não
podemos culpar Bush nem a China. E, à falta dum bode
expiatório, repetem-se com a fé de quem pratica um
esconjuro todas as explicações oficiais da cidade-Estado
para todos os problemas, em qualquer lugar do mundo. E
são elas a pobreza, a falta de habitação, o
desemprego... No caso concreto, nada disto resiste a uma
análise de alguns segundos. Aliás, podem cobrir-se
aqueles jovens de subsídios, juntando outros àqueles que
as suas famílias já recebem, e o problema da sua
exclusão manter-se-á. Porque ela nasce dum dos pilares
da nossa cidade-Estado: o nosso culto das vítimas. Esse
culto que nos permite sentir moralmente superiores. Os
pobrezinhos das segundas-feiras das famílias burguesas
do início do século XX foram substituídos pelos
excluídos. Tal como ninguém esperava que os pobrezinhos
deixassem de ser pobrezinhos, também ninguém esperou que
as famílias destes jovens deixassem de ser poligâmicas.
Ninguém exigiu que respeitassem a escola e fossem bons
alunos. Só após os atentados do 11 de Setembro se
passaram a tomar mais a sério as denúncias da aplicação
da sharia em território europeu e muito particularmente
em França. Em nome dessa tremenda mistificação que é o
multiculturalismo alimentou-se nestas populações um
culto das suas raízes africanas e muçulmanas, quando as
raízes deles estavam aqui. Criou-se-lhes uma identidade
num alhures que ninguém sabe onde fica, tanto mais que
não existe.
Seria bem mais fácil se, como defende Mário Soares,
estivéssemos perante pessoas em luta pelos direitos
conquistados e ameaçado pelo liberalismo. Mas não é nada
disso que acontece. O Estado social não tem resposta
para isto, porque isto é uma consequência directa do seu
paternalismo e do seu autismo. Alguns irão resistir
enquanto puderem para não colocarem em causa a sua
explicação oficial do mundo. Como o maire que compareceu
no funeral dos dois jovens envolvidos nos confrontos e
que não achou necessário acompanhar o corpo de
Jean-Claude Irvoas, morto a pontapé por um dos bandos.
Como Mário Soares, que os prefere apresentar como
pessoas lutando por direitos sociais.
Não sei se o destino de homens como Medina Carreira é
serem as nossas Cassandras. Mas espero sinceramente que
Mário Soares não fique para a História como o Sínon dos
nossos tempos. Quem era Sínon? O grande e eloquente
conversador que convenceu os troianos a levarem o cavalo
para dentro das suas muralhas. Tróia não caiu apenas por
não ter ouvido Cassandra. Tróia caiu também por ter
ouvido Sínon. Jornalista