Público - 5 Nov 05

 

Indiferença

São José Almeida

Vive-se uma relativização completa de valores. Como se não houvesse princípios do Estado de direito, nem uma ética social a preservar. Como se nada fosse imperativo e o país tivesse resvalado para um relativismo amoral em que todos fazem o que querem e em que impera a lei do salve-se quem puder.
Sem que ninguém tenha vergonha na cara

Ocaso Felgueiras continua a provocar perplexidade, sem que ninguém se mostre disposto a romper com a muralha de indiferença que se instalou no país. Esta semana o PÚBLICO noticiou factos relacionados com as ajudas que Fátima Felgueiras teve dentro do sistema judicial. Primeiro: um juiz, hoje representante do Estado português no Eurojust, Lopes da Mota, terá tentado pressionar o Ministério Público em relação à condução do inquérito. Segundo: um juiz-conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo, Almeida Lopes, terá aconselhado Fátima Felgueiras. Perante estas notícias ninguém reagiu. Como se o PÚBLICO e as páginas do destaque de segunda-feira não existissem, fossem um fantasma. O país político e institucional voltou a virar a cara, a assobiar para o alto. O ministro da Justiça fugiu a comentar, refugiando-se na máxima, já gasta mas cómoda, da separação de poderes. E, ao fim da tarde de segunda-feira, o procurador emitiu um comunicado, em linguagem enrolada, em que acaba por confirmar que há processos abertos a alguns factos revelados pelo PÚBLICO e que quanto aos que desconhecia vai mandar abrir investigações. O assunto ficou assim aparentemente arrumado com a abertura de mais inquéritos - esperemos que estes novos inquéritos não vão pelo caminho daqueles que foram abertos por causa da Resin e que como eles não acabem por morrer na praia sem que nunca sejam conclusivos, nem sequer mesmo concluídos.
O que é aflitivo nesta questão, o que de facto incomoda e interpela não é tanto o facto de Fátima Felgueiras ter alegadamente podido estar envolvida em supostas práticas corruptas, ou mesmo que haja um ou dois juízes eventualmente coniventes com uma alegada ilegalidade. Isso é logicamente possível. Há sempre excepções que confirmam as regras. O que incomoda e é aflitivo não é sequer o facto de poder haver juízes corruptíveis. É normal que em todas as classes profissionais haja bons e maus elementos, muita gente séria e alguma menos séria. É assim com os autarcas, é assim com os juízes, como é assim seguramente com os jornalistas. A questão não é de virgens. O que de facto incomoda e desespera é o silêncio, a indiferença. É o facto de ninguém se achar na obrigação de explicar nada. É o facto de os próprios implicados não se sentirem obrigados a vir a público explicar o que se passa e no mínimo pedirem a demissão dos cargos que ocupam - as escutas divulgadas pelo PÚBLICO na segunda-feira feitas ao juiz- conselheiro Almeida Lopes são no mínimos razão para este senhor pedir demissão dos lugares que ocupa na hierarquia da Justiça e do Estado português.
O que é desesperante é que ninguém reaja. Que o Governo fuja à questão, refugiando-se num dever de isenção, que erradamente é visto como proibitivo de se pronunciar. Como é aflitivo o silêncio do Presidente da República, que nem sequer faz saber se contactou ou não o procurador para ser informado sobre o caso. É o total amorfismo, a indiferença que surge como reacção das instituições que representam o Estado face a um caso que é todo ele escandaloso, a começar pela forma como uma fugitiva à justiça - sublinhe-se que Fátima Felgueiras, até prova em contrário, é presumivelmente inocente dos crimes de que é acusada, mas o que é facto também é que, quando foi chamada a depor como arguida, fugiu para o Brasil, onde esteve mais de dois anos, como foragida à justiça - consegue regressar a Portugal, ser posta em liberdade, candidatar-se e ser eleita presidente de uma câmara. Numa relativização completa de valores. Como se não houvesse princípios do Estado de direito, nem uma ética social a preservar. Como se nada fosse imperativo e o país tivesse resvalado para um relativismo amoral em que todos fazem o que querem e em que impera a lei do salve-se quem puder. Sem que ninguém tenha vergonha na cara.
Este clima de indiferença generalizada ficou patente esta semana numa outra situação que não é nova, mas que o PÚBLICO abordou terça-feira. Uma criança de 14 anos, imigrante de São Tomé, legalizada, que vive em Loures com a sua mãe, foi violada já por duas vezes. A primeira vez por três homens, em Junho de 2004, tinha então 12 anos. A segunda vez, em Novembro de 2004, aos 13 anos, por um homem. Isto sempre no seu bairro, um bairro problemático, perto da Quinta do Mocho. Para além do drama da pobreza, da doença crónica da filha, das dificuldades que tem para suportar o dia-a-dia miserável em que vivem muitos dos imigrantes em Portugal, esta mãe luta também contra a indiferença das instituições portuguesas que deviam estar atentas a estas situações e proteger quem precisa, como é o caso desta família.
Mas a história desta mulher e da sua filha tem sido o de bater às portas de diversas instituições, desde a Câmara Municipal de Loures ao Ministério da Segurança Social, passando até pela exposição do seu drama nas televisões, pedindo desesperada para que lhe arranjem uma casa, que possa pagar com o seu rendimento mensal de 300 euros por mês, de modo a que possa sair daquele bairro e livrar a sua filha da tortura psicológica em que vive, com medo de sair à rua. A resposta das instituições portuguesas, mais concretamente da Comissão da Protecção das Crianças e Jovens de Loures, chegou a semana passada, e é, se a mãe aceitar, o internamento da criança numa instituição, ou seja, separá-la da mãe. Perante o drama de uma família, a solução do Estado português e de um organismo que supostamente existe para proteger as crianças é separar uma família, tirar a filha à mãe, quando apenas bastava deslocar a família de bairro e garantir acompanhamento psicológico para a reintegração da criança violada.
Mais uma vez, a incapacidade de resposta com dimensão humana e social, mais uma vez a ausência de padrões éticos, mais uma vez o estar-se nas tintas, mais uma vez a vitória da lei da selva, mais uma vez a indiferença que toma conta da sociedade portuguesa.

 

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