Expresso - 5 Nov 05

 

O Estado não existe

António Pinto Leite

«Está em causa uma questão de justiça.»  

É JUSTO o elogio ao Governo pelas reformas que se propõe fazer no quadro da Administração Pública. A haver crítica seria por defeito, isto é, por tais reformas poderem vir a não ser suficientes para tirar Portugal da rota de empobrecimento em que se encontra.

O Governo apresentou as reformas sobretudo numa perspectiva de redução de benefícios de corporações privilegiadas e não tanto numa perspectiva de esgotamento da capacidade do país para financiar estes sistemas nos mesmos termos em que o tem vindo a fazer. Devia ter ido ao fundo da questão.

Mais: para lá do esgotamento dos recursos do país, está em causa uma questão de justiça social. É isto que é preciso comunicar, é isto que o bom senso e o bom coração português necessariamente entendem.

O principal enquadramento das reformas em curso não está na relação entre o Estado e os funcionários públicos, está na relação entre os portugueses que pagam impostos e os funcionários públicos. Certo que os funcionários públicos também pagam impostos, mas os números evidenciam que isso não faz a diferença.

Neste quadro, o Estado não existe. Existem portugueses que pagam a outros portugueses.

Os salários e regalias dos funcionários do Estado não são pagos pelo Estado, são pagos pelos portugueses que pagam impostos. O Estado é um mero intermediário.

A segurança no emprego que os funcionários públicos têm não é conseguida à custa do Estado, sai do bolso dos portugueses. Porque são os portugueses que pagam os salários de funcionários que não são precisos, porque são os portugueses que pagam sistemas ineficientes que, em qualquer situação privada, seriam extintos ou reformados de alto a baixo.

Algumas regalias, em particular no domínio da Segurança Social, são também suportados pelos portugueses que pagam impostos, uma vez que tais regimes, para subsistirem, têm de recorrer ao Orçamento do Estado e esse é pago pelos portugueses.

Que sentido de justiça existe quando se pedem mais impostos, como sucedeu com o aumento do IVA, a um pobre trabalhador do campo ou de uma fábrica para preservar regalias de outros que ganham muito mais do que ele?

Que sentido de justiça pode haver quando os nossos empresários não conseguem aguentar as suas empresas e milhares de portugueses estão a ir para o desemprego, enquanto, do lado Estado, apenas se discutem regalias, direitos adquiridos e segurança do emprego?

Que justiça existe quando a economia precisa desesperadamente de recursos, precisa desesperadamente que os impostos baixem e os funcionários públicos desencadeiam lutas sindicais e sociais como se este desespero lhes fosse totalmente indiferente?

Que justiça pode haver se se considerarem irreversíveis os direitos dos funcionários públicos, quando os portugueses que lhes pagam esses direitos, em boa parte para lhos poderem pagar, todos os dias perdem os direitos que eles próprios tinham?

Que ideia de justiça é esta que despreza a agonia da economia e da sociedade civil e protege um Estado que fica com 50% da riqueza que essas mesmas economia e sociedade civil produzem?

Que noção de justiça é esta que exige que cada português dinâmico entregue cerca de 65% do que ganha ao Estado (IRS, IVA, Segurança Social e outros...), para receber em troca o Estado mais burocrático e ineficiente da Europa?

As greves contra o Estado são greves contra os portugueses que pagam impostos.

No meio disto, o Estado é uma ficção. O Estado não existe, existem apenas portugueses.

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