Público - 7 Nov 05

Sinais dos tempos

Mário Pinto

 

1.A INGOVERNABILIDADE DO ESTADO SOCIAL BUROCRÁTICO. Os profetas e os filósofos, tal como os poetas, inventam às vezes expressões para significar novas "realidades" ou sugerir novas percepções. Por exemplo, a expressão "sinais dos tempos". A mim me parece que estes acontecimentos de Paris devem ser lidos como um sinal dos tempos - quer considerados apenas em si mesmos, quer integrados na avaliação (ideológica) em que uma grande parte dos média os relata e interpreta (notar a este respeito as críticas de Pacheco Pereira). Paris foi, em muitas ocasiões históricas, se não o cadinho onde nasceram fortes sinais dos tempos para a Europa, pelo menos o lugar da sua catalisação e irradiação na Europa. Não devemos descartar a hipótese de estarmos em presença de mais uma dessas ocasiões.
A leitura bem-pensante dos acontecimentos é a de uma crise política do Estado social, que não é (como devia ser, dir-se-á) capaz de integrar bem as comunidades imigradas. Mas essa é apenas a leitura política da questão. Há (pelo menos) um outro lado, o da cultura, por onde há que procurar a explicação da revolta desesperada e destemperada, e depois o seu acolhimento legitimador pelos média, que funciona como realimentador.
Claro que há as situações de partida dos migrantes, miseráveis e trágicas, a maior parte das vezes. Mas desta vez há a raiva e a guerra civil dos imigrados já relativamente instalados. Porquê? Porque acham que não podem esperar mais. Aqui é que está o problema.

2. A capacidade de sacrifício dos cidadãos e estrangeiros é hoje menor do que foi outrora, porque se postula que o Estado-Providência deve manter o progresso económico e social, o emprego e a coesão social. E que as pessoas têm direitos sociais, cuja satisfação é devida em termos quase absolutos. Foi o que nos explicou há dias Dahrendorf num artigo no PÚBLICO (Out., 22), intitulado "a política da frustração": "hoje, as pessoas querem resultados imediatos. Se não obtêm os benefícios rapidamente - e a maioria não os obtém - ficam impacientes. Os processos de migração massiva, que começaram ainda há pouco tempo, tornar-se-ão a grande questão das próximas décadas".
Assim, está em causa a governabilidade do Estado de direito democrático e social (mas anti-liberal), que depois não pode cumprir tudo o que promete a todos em termos igualitários e absolutos - gerando uma cultura providencialista-burocrática em que os cidadãos se tornaram autistas na exigência e no egoísmo, "pereat mundus". Com alguma razão: se todos dizem que é "a política" que constrói a cidade e educa os cidadãos, então não resta nenhuma responsabilidade nem para a sociedade civil nem para os indivíduos.
A mentalidade anti-liberal dominante prefere a ideia de que a vida profissional de todos e cada um deve tender para ser uma carreira merecida por mérito absoluto (e este de direito de natural), em que o mérito relativo é visto como discriminação dos pobres. Sem negar que há desvantagens de partida que pedem um esforço de igualdade de oportunidades (mas não mais) - e esta é toda a justa questão do Estado-social - não se pode fazer justiça sem justiça relativa. Ora, a mentalidade socialista e igualitarista dominante no ocidente suporta mal a ideia da competição e do mérito pessoal. Tem dificuldade em evoluir para uma ideia de socialismo liberal, quanto mais de liberalismo social, como tenta Tony Blair, que a meu ver já tem o seu lugar ganho na história do pensamento e das experiências políticas socialistas com a ideia da terceira via.

3. E não pensemos que este é um fenómeno que não tem a ver connosco. Pelo contrário. Está enganado quem pensar que não temos em Portugal o mesmo fenómeno, em grau e formas diferentes. Temo-lo latente nos jovens imigrantes (por exemplo de certos bairros); e temo-lo também latente em várias corporações (sobretudo públicas), como fica bem demonstrado com as greves de funcionários públicos, polícias, militares e magistrados. Já chegámos ao ponto de as declarações dos magistrados sindicalistas conterem ameaças veladas ao poder político democrático.

4. A NOVA EVANGELIZAÇÃO. Entretanto, há outros sinais dos tempos.
Decorre nestes dias, em Lisboa, o Congresso Internacional para a Nova Evangelização. A Nova Evangelização foi um apelo do Papa João Paulo II, e está sendo entendido como um apelo profético. O Papa não definiu precisamente o que se deva entender por nova Evangelização. Mas é assim mesmo que o apelo é fecundo.
Para quem é a Nova Evangelização? Sem dúvida, para os não baptizados. Mas também para os baptizados, porque a celebração do rito sacramental do baptismo não consome todo o baptismo. É verdade que, pelo rito sacramental (e supostas as devidas disposições, note-se), o baptizado ganha um novo carácter indelével; mas o baptismo não é um evento de um só momento. Como sacramento de iniciação, ele deve ser visto como o sacramento que abre uma vida nova, ao longo da qual a renovação pelo Espírito é uma longa transformação. É claríssimo nas Escrituras que a salvação em Cristo é graça imerecida; mas é igualmente claríssimo que tem de ser recebida e acolhida com méritos nossos. Ora hoje, os chamados "laicos" e os "católicos não praticantes", expressão esta imprópria mas corrente, são muitos. Eles necessitam de um convite kerigmático, que não ofende as liberdades e a separação entre o Estado e as Igrejas, mas é legítimo e respeitoso exercício de cidadania. Aliás, (sejamos claros e precisos) a todos sem distinção convém uma nova conversão e uma renovação baptismal no Espírito. Uma das ideias que já foi forte na pastoral ordinária, e hoje anda um pouco esquecida, é a de que, além do querigma, vem a catequese da renovação ao longo da vida espiritual.

5. A DECADÊNCIA DAS VIRTUDES. A Europa ocidental e os Estados Unidos são sociedades decadentes, porque abandonaram a moralidade baseada nas virtudes tradicionais - é o que diz um livro recentemente publicado pela "Social Affairs Unit" de Londres, intitulado: "Decadence. The passing of personal virtue and its replacement by political and psychological slogans"; isto é: Decadência: o desaparecimento da virtude pessoal e a sua substituição por slogans políticos e psicológicos. O volume reune autores de diversas correntes e opiniões. Uma primeira secção contém ensaios sobre as "velhas" virtudes, tais como a prudência, o amor y a valentia. A segunda trata de "novas" virtudes, como as referidas ao meio ambiente. O livro não pretende esgotar os temas, mas provocar uma discussão. Muito a propósito; mas discutir as virtudes pessoais não está muito na moda.
Há dias passei pelo edifício da Câmara de Gaia, e verifiquei que, na ala esquerda do edifício, para quem está defronte da entrada, destacam-se em relevo na pedra as seguintes palavras: trabalho, honra, nobreza, civismo. Na ala direita, em simetria, lê-se: verdade, justiça, virtude, lisura. Quer dizer: há mais ou menos cem anos ainda era questão, entre nós, de esculpir estas virtudes nos edifícios públicos. Hoje, a quem lembraria deixar estas mesmas e perenes virtudes proclamadas numa lápide pública? Professor universitário

 

[anterior]