Público - 12 Nov 05

Ri de quê?
João Cândido da Silva

 

José Sócrates anunciou, na abertura da discussão sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2006, que a recuperação de dívidas ao fisco já atingiu, este ano, 1,1 mil milhões de euros, valor que representa cerca de 3,6 por cento das receitas fiscais estimadas. Tratando-se, de acordo com o primeiro-ministro, de um valor nunca antes atingido e sendo conhecidas as dificuldades tradicionais em fazer entrar nos cofres do Estado as verbas que lhe são devidas, o desempenho só pode ser visto como um sinal positivo de que algo está a mudar. O imobilismo da administração fiscal, sempre mais tentada a enveredar pela solução simples de ir buscar mais a quem já cumpre os seus deveres, parece estar a ser substituído por um acréscimo de eficiência na sua actuação.
A primeira conclusão a tirar desta situação é a de que a contestação ao vencimento do actual director-geral dos Impostos, quando da sua nomeação por Manuela Ferreira Leite, revelou-se precipitada e demagógica. O grande problema da máquina pública, em geral, está em que gasta demasiado dinheiro em salários sem que o retorno, do ponto de vista da qualidade dos serviços que prossegue, seja proporcional à despesa efectuada. Eliminar os gastos injustificados, apostar no sistema de progressões pelo mérito e criar a margem de manobra financeira necessária para permitir o recrutamento de quadros motivados e de elevada qualidade, destinados a lugares-chave da administração, é a via a seguir para obter progressos no aparelho do Estado. Como sucede com Paulo Moita Macedo, não deve estar em causa o que se ganha, mas se o que se faz e os resultados que se alcançam justificam o vencimento que se recebe no final de cada mês.
Se a recuperação de dívidas referida pelo primeiro-ministro tem um lado favorável, a sua proclamação como um trunfo de quem pretende passar uma imagem de boa governação encerra algumas contradições. Desde sempre, o discurso relativo ao combate à fraude e evasão fiscais assentou na ideia de ser essencial colocar mais contribuintes a pagar, para que todos pudessem pagar menos. Como se sabe, nada disto tem passado de promessas inconsequentes, inspiradas em meras boas intenções. A carga fiscal não tem parado de aumentar em Portugal e voltará a subir no próximo ano, assegurando mais de dois terços da redução prevista no défice público. O lema, persistente, tem sido o de colocar mais gente a pagar, para que todos paguem cada vez mais. E não mudou com o Governo de José Sócrates.
Ao invés do que seria expectável, a recuperação de receitas não tem sido aproveitada para aliviar os impostos de quem entrega pontualmente aquilo que deve, a começar pelos trabalhadores por conta de outrem. Também se verifica que tem servido para continuar a sustentar uma legião de funcionários públicos demasiado vasta em relação à dimensão do país e à sua população activa, bem como para alimentar uma voraz corte de subsiodependentes que, do sector empresarial à área da cultura, acham que o Estado é seu devedor só pelo simples facto de existirem. A alegria triunfante de Sócrates é excessiva e precipitada, quando é evidente que não há ainda grandes razões para celebrar. A administração pública está a conseguir arrecadar dinheiro em dívida, mas para continuar a gastá-lo mal. Perante isto, o primeiro-ministro ri de quê?

Matéria sensível


A perspectiva de receber um bolo inesperado de quatro mil milhões de euros é uma enorme tentação para quem esteja no Governo com a prioridade de endireitar as finanças públicas. O valor actualmente atribuído ao fundo de pensões do Millennium bcp equivale a cerca de metade do saldo negativo consolidado das contas públicas previsto para 2006 e, se fosse transferido para a Segurança Social, representaria um passo largo na direcção da redução do défice. A proposta que a instituição dirigida por Paulo Teixeira Pinto colocou em cima da mesa suscita, no entanto, diversas questões que convém serem clarificadas. Estão em causa os interesses dos colaboradores e accionistas do banco, do Governo e dos contribuintes, neste caso no que se refere à sustentabilidade futura do sistema oficial que visa garantir as pensões de reforma.
Do ponto de vista da instituição financeira, a ideia é inteligente. As crescentes responsabilidades que se vê obrigado a assumir, redimensionadas com a alteração de regras contabilísticas, introduzem um elemento de volatilidade no seu balanço, afectando, potencialmente, os resultados anuais. Embora o fundo de pensões apresente a vantagem de constituir um sistema de capitalização, onde as provisões efectuadas são investidas e rendibilizadas, também aqui o envelhecimento da população vai produzindo efeitos ameaçadores. Segundo as contas do banco relativas a 2004, o número de pensionistas já ultrapassava o dos trabalhadores que se encontram no activo e ao serviço da instituição. E, com base nessa informação, anterior às mudanças operadas nas normas de contabilidade do sector financeiro, registava-se, no final do ano passado, um défice no fundo. Nada seria mais interessante para o banco do que conseguir transferir para o Estado este foco de instabilidade, eliminando um peso a que se encontra agrilhoado. Os accionistas agradeceriam.
Para o Governo, a perspectiva de melhorar o seu desempenho no combate ao desequilíbrio das contas públicas através de receitas extraordinárias representaria a quebra de uma promessa eleitoral. Acabaria até por fazer precisamente aquilo que criticou, com veemência, ao Executivo que o antecedeu. Já se sabe que tudo isto é relativo. Desde que se considere em situação de necessidade e com falta de talento, de oportunidade ou de coragem para escolher outras soluções, o Governo já deu mostras de que as garantias dadas em atmosfera de campanha eleitoral não são para levar muito a sério. A questão é que a resolução, no imediato, de um problema no défice poderia trazer dividendos políticos, mas os seus custos só seriam pagos daqui por alguns anos, quando o actual Executivo já tiver passado à história. É nestes terrenos que se coloca a grande interrogação.
O Millennium bcp não se lembraria de tentar a sua sorte, sugerindo a entrega do seu fundo de pensões à Segurança Social, caso previsse que as responsabilidades que terá de assumir no futuro não constituirão uma pedra no sapato em matéria de rendibilidade, estabilidade e saúde financeira. O que faz desconfiar que o que seria excelente para o banco poderia terminar num desastre financeiro para a Segurança Social, forçada a acolher mais responsabilidades, eventualmente não provisionadas, numa altura em que a ruptura do sistema é apontado para daqui por dez anos. E esta perspectiva, pouco risonha, não inclui a possibilidade, óbvia, de outros bancos, com problemas idênticos aos que preocupam o Millennium bcp, virem a fazer fila à porta do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social com o objectivo de alcançarem um tratamento semelhante ao que eventualmente beneficie a instituição liderada por Paulo Teixeira Pinto.
A reacção do Governo, para já, foi cautelosa. Não disse que sim, nem que não, sublinhando que, a realizar-se, a operação terá de ser financeiramente neutra para o Estado. Louva-se o cuidado, mas espera-se que, numa matéria sensível como esta, que pode ajudar a agravar os problemas actuais da Segurança Social, o processo não decorra no resguardo dos gabinetes, à revelia de qualquer resíduo de transparência. Nesta discussão, o essencial não são os problemas financeiros dos bancos ou a performance política do Governo, mas o que pode melhorar ou comprometer as expectativas das futuras gerações sobre os apoios da Segurança Social. Jornalista

 

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