Público - 12 Nov 05
Sobre o Orçamento do Estado
António Bagão Félix
Em 2004, o défice foi de 2,9 por cento do PIB (em
óptica de contabilidade nacional, o que quer dizer
que já inclui todos os saldos negativos em relação
ao orçamento inicial, como é o caso do SNS). Se a
esses 2,9 por cento juntarmos os 2,3 por cento das
receitas extraordinárias, teremos então 5,2 por
cento. Ora é este valor de 5,2 por cento de 2004 que
se tem de comparar com os 6,2 por cento apresentados
para a execução de 2005
1.Estamos na "estação orçamental"
por excelência: a da discussão e da aprovação dos
propósitos em matéria de finanças públicas. Temos
assistido, como de costume, às variadas liturgias
que sempre têm lugar por esta ocasião: os discursos
compulsivamente oficiais (o do Governo e das
oposições) e as análises compulsivamente
esclarecidas da pletora dos habituais analistas da
praça.
Percebi com a experiência de um Orçamento pelo qual
fui politicamente responsável as dificuldades que
sempre surgem durante a sua elaboração e discussão.
Aprendi sobretudo como é ingrato e até
incompreendido o papel de um qualquer ministro das
Finanças, ainda por cima num contexto de economia
debilitada e de regras externas imperativas.
No fundo, e em síntese caricatural, quase todos (os
ministros sectoriais, os deputados, os
representantes dos vários interesses, os
funcionários...) querem uma impossibilidade
aritmética: do lado da despesa, mais nas parcelas
(de cada um) e menos na soma; do lado dos impostos,
menos nas parcelas (de cada um) e mais na soma.
Daí que os Orçamentos sejam a expressão de
conciliações, contradições e inequações por mais
bem-intencionados que sejam os propósitos dos
governos. E como é difícil ter o Orçamento desejado,
quando os vencimentos, as pensões e os juros
correspondem a 95 por cento dos impostos totais.
Se alguma coisa se aprende como ministro das
Finanças, é a respeitar as dificuldades e a
amadurecer uma consciente humildade.
2. Por isso, não pretendo - agora de fora - "tornar
fácil" pelo verbo o que é objectivamente muito
complicado pela verba. Para isso, já chega ouvir até
à náusea muito boa gente debitando receitas
milagrosas com o à-vontade de quem parece nunca ter
tido nada a ver com o passado... Diria apenas que a
principal vitória de um ministro das Finanças na
aprovação de um OE passa, na minha opinião, por
ganhar espaço e ter determinação para aprofundar a
essência do "algoritmo do equilíbrio": menos despesa
para menos impostos e não o inverso de mais impostos
para mais despesa. Só assim se estimula o triângulo
virtuoso de "finanças públicas
equilibradas+crescimento da economia+ reformas de
fundo".
3. Neste contexto, porém, não poderei deixar de
relevar o modo como ainda continua a ser conduzida a
saga do défice orçamental pelo actual Governo e seu
primeiro-ministro. Foi errado (desonesto mesmo)
comparar uma estimativa forjada para o final do ano
em "modelo de pura inacção" com o défice apresentado
no Orçamento rectificativo, ou seja, comparar duas
previsões para o futuro. O que é correcto e
objectivo é comparar o novo défice do OE
rectificativo com o défice real (sublinho: real) no
final de 2004. E o que temos então?
Em 2004, o défice foi de 2,9 por cento do PIB (em
óptica de contabilidade nacional, isto é, de
compromissos e não de caixa, o que quer dizer que já
inclui todos os saldos negativos em relação ao
Orçamento inicial, como é o caso do SNS). Se a esses
2,9 por cento juntarmos os 2,3 por cento das
receitas extraordinárias, teremos então 5,2 por
cento. Ora é este valor de 5,2 por cento de 2004 que
se tem de comparar com os 6,2 por cento apresentados
pelo Governo para a execução de 2005.
E assim se constata a grosseira mentira de que em
2005 se iria reforçar a consolidação orçamental. E
assim se utilizou a manipulação mediática para
"vender" o aumento do IVA e algumas medidas de
contenção da despesa - que, em parte, aplaudo -, mas
que não precisariam de tanto terceiro-mundismo num
país europeu no século XXI.
Para confirmar esta situação basta atender ao
relatório público de execução orçamental até
Setembro: a despesa corrente do subsector Estado
cresceu mais 10,2 por cento em comparação com o
mesmo período em 2004. E o saldo global negativo do
mesmo subsector passou de 5561 milhões de euros para
6365 milhões de euros. Só que agora isto apenas
aparece timidamente nos rodapés das pequenas
notícias...
4. Longe de ser exaustivo, termino com algumas
questões do OE agora em discussão e que me suscitam
natural curiosidade:
Por que será que agora alguns opinadores se sentem
confortados com um esforço de consolidação que em
dois terços é feito do lado dos impostos?
Por que será que os PPR voltam a ter benefícios
fiscais, quando - por ironia - sem incentivos dessa
natureza estão este ano a crescer 70 por cento,
fruto de adaptação do mercado a melhores produtos?
Por que será que se vão repor estes benefícios à
poupança aos aforradores a quem, com a outra mão
orçamental, se aumenta a taxa marginal de IRS de 40
por cento para 42 por cento?
Por que será que os analistas omitem que para
"compensar" os benefícios à subscrição de PPR se vai
agravar para o dobro o montante a pagar de IRS no
vencimento do capital investido nesses mesmos
produtos?
Por que será que não se repuseram outros benefícios
fiscais, como o da conta poupança-habitação, cuja
abolição foi qualificada, por quem agora é poder,
como um ataque à classe média?
Por que será que já ninguém fala da tributação dos
bancos e dos offshore, quando no ano passado a
esquerda reclamava por mais carga fiscal e outras
forças reclamavam por menos?
Por que será que as confederações empresariais que
sempre exigem menos absentismo e mais produtividade
não questionam o ter-se voltado a aumentar o
subsídio de doença nas baixas de curta duração, que
vão custar mais ao Estado e ao país do que aquilo
que se poupará por outras medidas de contenção
tomadas na Segurança Social?
Por que será que a anunciada reforma do subsídio de
desemprego - em larga escala semelhante à por mim
proposta há pouco mais de um ano - é agora tão
candidamente recebida pelas confederações sindicais,
quando foi violentamente atacada antes?
Por que será que não transferir dois por cento das
contribuições sociais para o fundo de capitalização
da Segurança Social foi nos últimos anos um "crime
orçamental" e agora já é aceitável?
Por que será que a previsão de aumento das
exportações à volta de seis por cento é agora tão
"realista", apesar de bem distante da previsão do
Banco de Portugal de 1,2 por cento?
Por que será que a agora "linguagem orçamentalmente
correcta" passa ao lado dos aumentos fiscais, desde
o IRS dos reformados ao imposto automóvel, IVA,
imposto sobre produtos petrolíferos, impostos sobre
fundos de investimento, imposto de selo, etc., e já
não se fala de um ataque à classe média como era o
refrão do ano passado em que até houve
desagravamento fiscal?
Por que será que o PEC, Pagamento Especial por
Conta, agora agravado, já não suscita reacções como
as que levantou no tempo do Governo Durão Barroso?
Por que será que 250 milhões de euros de venda de
património do Estado previstos no OE agora já não
são receitas extraordinárias, mas tão- só
ordinárias?
Por que será que agora já é "normal" que o OE para a
Saúde não contemple um saldo negativo de 136,4
milhões de euros anunciado pelo ministro, mesmo
depois de ter sido generosamente contemplado, e as
ministras da Cultura e da Educação falem na AR na
imprescindibilidade de mais dinheiro, agora que já
não há "truques"orçamentais?
Por que será que cativações a 40 por cento, como na
lei da programação militar, já não ferem a
susceptibilidade dos adversários das ditas, agora
que já não há "truques"?
Por que será que deixou de ser um "problema
político" a dívida pública ir atingir 68,1 por cento
do PIB, ou seja, mais três pontos percentuais do que
no ano antecedente?
Por que será que a "nacionalização" de 80 por cento
da Compal através da compra pela CGD já não suscita
quase nenhum comentário na comunicação social e como
teria sido se tal acontecesse no anterior Governo?
Por que será que certos interesses tão
intervenientes ou conspirativos no ano passado estão
agora tão sossegados?
Por que será que o Presidente da República já não
precisa de chamar os economistas do costume para o
habilitar a melhor compreender o OE?
Por que será?... Ex-ministro das Finanças