Expresso - 12 Nov 05
O ‘jackpot’ do Euromillenium
Fernando Madrinha
«Poderá um Governo em
dificuldades financeiras receber melhor presente da Natal?»
A MELHOR notícia destes dias de debate
orçamental não é o facto de termos um orçamento «de verdade»
e todos ficarmos a saber que vem aí um ano... ainda mais
pesado. Nem a promessa, feita pelo primeiro-ministro, de que
o salário mínimo terá, em 2006, um aumento acima da inflação
esperada. Nem o facto de, debate após debate, José Sócrates
melhorar os seus desempenhos como tribuno de combate, o que,
infelizmente, não muda nada a situação em que o país se
encontra, mas serve de conforto a um Governo onde, além do
primeiro-ministro, nenhuma outra «estrela» se revelou até
agora. E serve também para se perceber que, mais discurso
menos discurso, mais crítica menos crítica, não há
alternativas credíveis às políticas anunciadas - desde que
elas sejam, de facto, cumpridas.
A grande notícia sobre o Orçamento do
Estado é a de um milagre que, por extraordinária
«coincidência», ocorre no momento exacto em que os ministros
e os deputados discutem as contas do Estado e constatam que
não têm boas notícias para dar. Trata-se de um «jackpot» de
quatro mil milhões de euros, que talvez venha, não do
incerto Euromilhões mas do Millennium bcp. Poderá um Governo
em dificuldades financeiras receber, a esta distância,
melhor presente de Natal?
Na aparência, as coisas são simples: o
banco transfere o seu fundo de pensões para a Segurança
Social e esta assume o encargo de pagar as reformas aos
27.500 beneficiários. Aqueles que ainda trabalham passarão a
descontar os mesmos 11% de toda a gente, em vez dos oito que
o banco lhes cobra, ficando este com o encargo da diferença.
Para se perceber como o «negócio» é tentador para o Governo
- para este ou para qualquer outro - basta dizer que a
quantia em causa seria o suficiente para pôr o défice perto
dos almejados 3%.
Não se questionam as boas intenções do
banco, mas a sua iniciativa - ou a notícia da sua
iniciativa, visto que, de viva voz, o Millennium diz apenas
que não fez uma proposta «formal» - não
corresponde certamente a um acto patriótico de generosidade
desinteressada. Se os fundos valem o que representam, se
correspondem a investimentos seguros e satisfazem
inteiramente as necessidades de financiamento das pensões em
causa, o Governo parece não correr qualquer risco - agora,
pelo menos. Mas custa a perceber que uma medida tão
fortemente contestada há menos de um ano na Caixa Geral de
Depósitos seja recebida com tanta naturalidade pelos
funcionários de outra instituição bancária e até pelos
sindicatos.
A crer no que já se ouviu ao ministro do
Trabalho e da Solidariedade Social, o Governo está
tentadíssimo a ir por diante com o contrato. Mas num momento
em que a sustentabilidade da Segurança Social está posta em
causa, a prazo não muito distante, faz sentido ela assumir
novos compromissos a que não está obrigada e correr os
riscos inerentes à gestão de um fundo que, como todos os
fundos de pensões, pode ter hoje um valor e amanhã apenas
metade?
Quando a esmola é grande, o pobre
desconfia. E essa devia ser a atitude de princípio do
Governo. A menos que, para resolver uma emergência no
presente - seja tapar o défice ou, simplesmente, reforçar a
Segurança Social -, ele esteja disponível para assumir o
risco de comprometer ainda mais o futuro.
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