Expresso - 12 Nov 05

França e a cartilha do Ocidente

Henrique Monteiro

«A segunda geração, educada entre nós, ouviu a cartilha cultural pós-moderna.»

O QUE se passa em Paris pode (e vai) passar-se em qualquer outra grande cidade europeia, em qualquer metrópole do Ocidente. Para tal basta uma pequena fagulha; o combustível que alimenta aquele imenso fogo existe em todo o lado.

A forma mais simplista de contar a história é afirmar que esta é uma revolta da juventude, nomeadamente pelo facto de Sarkozy ter chamado «escumalha» aos jovens dos subúrbios. Mas, verdadeiramente, ninguém acredita que isto mesmo não acontecesse, mais dia menos dia, sem a colaboração destemperada de Sarkozy.

Outro modo simplista de encarar a história é, concordando com Sarkozy, achar que todos estes jovens são, de facto, «escumalha».

Ambas as versões são, em parte, verdade e, em parte, mentira. Há uma revolta latente e, como em quase todos estes acontecimentos, há uma «escumalha» que se aproveita.

Perante isto, a sociedade olha com algum espanto. Logo em França, que enche a boca com o seu modelo social e a sua integração exemplar - a pátria da liberdade e da igualdade. Logo em França, onde chovem subsídios para tudo e mais alguma coisa: para a integração de africanos e magrebinos; para a alfabetização das minorias; para o acolhimento aos imigrantes.

Escapa-nos, porém, o essencial. Escapa-nos que esta segunda geração, já educada na Europa, não tem a mesma motivação dos pais. Estes imigraram para fugir à miséria (à verdadeira miséria e não ao que se chama miséria dentro da Europa). Trabalharam e trabalham como cães, nos empregos mais difíceis e mais desqualificados, conseguindo, com o pouco dinheiro que ganham, mandar parte para a terra e sonhar com um futuro melhor para os filhos. Os portugueses bem conhecem esta saga; «mutatis mutandis» foram parte dela em França.

MAS a segunda geração, educada entre nós, ouviu a cartilha cultural pós-moderna. Uma cartilha contra o «melting pot», a favor da afirmação da diferença; uma cartilha de irresponsabilidade pessoal e de dependência social do Estado; uma cartilha que coloca todos os benefícios no tempo presente e todos os sacrifícios como dispensáveis.

É esta nossa cultura que contribui decisivamente para a tribalização da sociedade e para o fim da ideia da recompensa diferida.

O que os jovens dizem na rua é que não se sentem franceses, nem belgas, nem alemães, em parte porque lhes ensinaram que nada havia de maravilhoso em se ser europeu; pelo contrário, hoje em dia, ser-se europeu é sinónimo de pertencer a um continente que fez coisas terríveis na história (apesar de isso ser tão verdade para a Europa, como para a Ásia ou a África). O que hoje os jovens pensam é que não é necessário trabalhar duro para mais tarde terem uma recompensa. Apenas sabem que não têm o que lhes prometeram - um reino de facilidades sustentadas pelo Estado e repleto de assistentes sociais e ONG que velam por eles.

Claro que também não é apenas isto que conduz os jovens à violência.

Mas é também isto.

E este talvez seja o aspecto de que menos falamos; a culpa que menos assumimos; a responsabilidade que menos reconhecemos.

hmonteiro@mail.expresso.pt

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