Expresso - 12 Nov 05
Paris e a
cultura
literária
João Carlos Espada
«A insistência
francesa, copiada por muitos políticos europeus e nacionais,
naquilo que Tocqueville designava de «atracção pelas teorias
gerais», não é um sinal de abertura intelectual, mas de
fechamento.»
Recordando Tocqueville Vale sempre a pena
recordar Tocqueville, mas isso pode ser particularmente
instrutivo a propósito dos graves distúrbios em Paris e da
bizarra reacção inicial dos políticos franceses. Dizia
Tocqueville no seu livro O Antigo Regime e a
Revolução: «Quando se estuda a história da nossa
Revolução, vê-se que ela foi conduzida precisamente no mesmo
espírito que a fez produzir tantos livros abstractos sobre o
governo. Vemos a mesma atracção pelas teorias gerais, os
sistemas completos de legislação e a simetria exacta nas
leis; o mesmo desprezo pelos factos reais; a mesma confiança
na teoria; o mesmo gosto pelo original, o engenhoso e o novo
nas instituições; a mesma vontade de refazer de uma só vez a
Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano
único, em vez de procurar emendá-la nas suas várias partes.
Um espectáculo assustador! De facto, o que é qualidade num
escritor é por vezes vício num estadista; as mesmas coisas
que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a
grandes revoluções».
Espírito literário Foi neste espírito
literário que a elite política francesa começou por reagir
aos distúrbios de Paris. Em vez de restabelecerem a lei e a
ordem para garantir a protecção dos cidadãos pacíficos e
cumpridores da lei - a primeira e fundamental função do
Estado liberal democrático - começaram por se atacar entre
si. O primeiro-ministro - que, como tem sido oportunamente
lembrado, se apresenta como poeta - bem como vários dos seus
ministros desautorizaram o ministro do Interior. E todo o
tipo de abstracções foi chamado à discussão sobre as
«causas» dos distúrbios. Entretanto, os subúrbios ardiam e
os gangues tomavam conta das ruas.
Entre as «causas» preferidas pela elite francesa para os
distúrbios encontram-se os chamados «neoliberalismo
anglo-saxónico e a globalização que ameaçam o modelo social
francês e europeu». Nenhum destes termos é definido em
relação a factos, mas apenas a ideias gerais e tremendamente
abstractas. O socialista Jack Lang, por exemplo, definia o
modelo social europeu (em artigo no «The Wall Street
Journal» de 28 de Outubro) como «fundado nos valores da
justiça, da emancipação dos seres humanos, da santidade dos
direitos humanos, da solidariedade, da luta contra a
discriminação, e da saúde e segurança no trabalho».
É sem dúvida curiosa a ausência de referência à
liberdade. Mas o ponto aqui é que, com tamanhas abstracções,
toda a gente está de acordo e nada disso ajuda a analisar os
reais problemas em causa.
Observando factos Para introduzir uma
análise do chamado modelo social francês e do chamado
neoliberalismo anglo-saxónico, talvez fosse útil começar por
observar que o primeiro produz há vários anos 10% de
desemprego - 30% entre os jovens, sobretudo menos
qualificados, que constituem a base de recrutamento dos
gangues. Em Inglaterra e nos EUA o desemprego tem sido
metade ou menos de metade.
Também valeria a pena recordar que, em França, no final
da década de 1990, um governo socialista reduziu a semana de
trabalho para 35 horas. A ideia era tirar horas de trabalho
a quem o já tinha para dar emprego a quem o não tinha. As
empresas iriam então contratar mais trabalhadores para
compensar as horas de trabalho retiradas aos que já eram
empregados.
A ideia foi considerada uma verdadeira alternativa ao «neoliberalismo
anglo-saxónico». Eis os resultados: o desemprego em França
permanece nos 10%; a produtividade per capita
desceu 4,3%; o crescimento económico foi medíocre. No mesmo
período, a produtividade per capita cresceu
5% no Reino Unido e 6% nos EUA.
Mais alguns factos No caso americano,
acaba de ser apurado um crescimento económico de 3,8% para o
terceiro trimestre deste ano. Isso significa que a economia
americana tem crescido a uma taxa anual de mais de 3%, por
vezes 4%, ao longo dos 10 últimos trimestres, desde o
segundo de 2003. Curiosamente, recordava há dias «The Wall
Street Journal», foi nessa altura que se soube que as
reduções de impostos iam ter lugar com efeitos retroactivos
a 1 de Janeiro de 2003.
Essas reduções de impostos inflamaram os políticos
franceses, que os acusaram de «mais um golpe para destruir o
pequeno Estado social que ainda resta na América». A verdade
dos factos, todavia, é que as receitas fiscais do ano que
terminou a 30 de Setembro subiram cerca de 274 mil milhões
de dólares, ou 14,6%. Por outras palavras: os cortes nos
impostos impulsionaram a economia e reduziram a evasão
fiscal; por essa dupla via, fizeram aumentar as receitas
fiscais.
Fechamento intelectual Não gostaria de
ser mal entendido. Não se trata de discutir em três penadas
as vantagens e desvantagens comparadas das economias
francesa, inglesa e americana. Também não se sugere que os
distúrbios de Paris são exclusivo da França: incidentes
semelhantes tiveram recentemente lugar em Birmingham e New
Orleans. Trata-se apenas de chamar a atenção para que a
retórica abstracta, tão do agrado dos políticos franceses,
não contribui para a discussão dos problemas políticos
reais. Pelo contrário, essa retórica exclui e impede uma
discussão desapaixonada e o ensaio de correcções parcelares
para problemas parcelares.
A insistência francesa, copiada por muitos políticos
europeus e nacionais, naquilo que Tocqueville designava de
«atracção pelas teorias gerais», não é um sinal de abertura
intelectual, mas de fechamento. Fechamento à realidade -
designadamente à realidade económica - e à séria reflexão
sobre ela, que é a característica primeira de uma sociedade
aberta.
jcespada@netcabo.pt