Público - 13 Nov 05

Esta noite sonhei contigo

RETRATO DA SEMANA ANTÓNIO BARRETO

 

Sonhei com a Europa. A dos Gregos e dos Romanos. A do Renascimento e das Luzes. A de Montaigne, Leonardo e Piero della Francesca. A de Bach e Stendhal. A de Mozart e Turner. A dos cafés, como evoca Steiner. A da grande ópera, da fotografia e do cinema. A da Revolução industrial. A das liberdades. A Europa que foi. A Europa que poderia ter sido. Que talvez ainda possa vir a ser. A que os seus actuais dirigentes, com as melhores intenções, vão destruindo e tornando improvável. A que ninguém precisa de construir, porque já existia. A Europa a que não é necessário dar forma, porque é e tem espírito. Aquela que, a exemplo de qualquer ser humano, foi capaz do melhor e do pior. A que soube, antes e melhor do que os outros, separar as leis dos homens dos livros dos deuses. A que, apesar das guerras, soube fazer da vizinhança uma história de amor. A Europa que atraiu pela grandeza e cuja decadência é atraente.

SONHEI COM ESSA EUROPA, QUE recordo, sinto, penso, ouço e espero. Mas que já não vejo. Ou cada vez menos vejo. Aquela que tenho diante dos meus olhos é um monstro senil, de fabrico artificial, produto de funcionários, não certamente de intelectuais, artistas, empresários e trabalhadores. É uma Europa egocêntrica e vaidosa, orgulhosa de uma superioridade que já não tem. E de uma reputação que já não merece.

GRADUALMENTE, A EUROPA FEderal, a Europa unida, a utopia burocrática do fim do século XX vai-se desfazendo. Com as estrelas da bandeira feitas nuvens a esfumarem-se em azul desbotado. O desprezo da França e da Alemanha pelo Pacto de Estabilidade foi sinal anunciador. Os dispositivos de disciplina financeira e monetária que se propunham assegurar as condições de crescimento e estabilidade serviam para os pequenos países, mas não para a União quando estavam em causa os dois grandes países fundadores. Percebeu-se que a disciplina não era para ser levada a sério. Confirmou-se que os Estados não eram iguais. Foi dado a todos os povos europeus o sinal de que a demagogia financeira era aceitável.

COM A FAMIGERADA ESTRATÉGIA de Lisboa, a União portou-se à altura da sua arrogância. Pretendeu, preto no branco, ser, em menos de dez anos, a maior potência económica e tecnológica do mundo. Garantiu que tal faria sem perder emprego. E prometeu que a todos esses "desafios" responderia, ao mesmo tempo que consolidaria a sua mais querida pérola, o "modelo social europeu". Tal estratégia e a necessidade da sua afirmação eram já um certificado de morbidez, a recordar as declarações de Kruchthev, há décadas, segundo as quais a União Soviética ultrapassaria os Estados Unidos na década de sessenta! Como se tal não bastasse, menos de dez anos depois da sua formnulação os europeus verificaram, com factos e números, que a estratégia de Lisboa tinha falhado. E como quase sempre se passa com a Europa, logo foi decretado que era necessário relançar o fiasco.
NA POLÍTICA EXTERNA, A UNIÃO não se tem comportado melhor. Com a aventura iraquiana dos Estados Unidos, revelou-se mais uma vez a pusilanimidade de alguns europeus e a duplicidade francesa, o que quer dizer, a fragilidade da União. A Europa não conseguiu agir, nem sequer influenciar a decisão americana. Por esta desastrosa intervenção, conclusão cada vez mais aceite, tanto são responsáveis os americanos como os europeus. Fraqueza ainda perante a Turquia. Após o fenomenal alargamento para 25, percebeu-se que a versão francesa e alemã de uma Europa mais ou menos ao serviço daqueles dois países era a única a ortodoxia comunitária aceitável.

FOI-SE TORNANDO MANIFESTA A incapacidade de analisar, criticar e reformar uma espécie de senilidade precoce que afligia a comunidade. O texto e o propósito da Constituição Europeia tornaram evidente o facto conhecido: a surdez e o autismo acompanham o envelhecimento prematuro. A derrota dos referendos francês e holandês foi um toque de finados difícil de ultrapassar. Logo a seguir, o adiamento envergonhado de outros referendos projectados (entre os quais o português), assim como de aprovações parlamentares que faltavam, exibiu um fenómeno por muitos conhecido, mas com que a maioria se enganava a si própria: ou a União que existe aceita a submissão à França e à Alemanha, ou deixa simplesmente de ter corpo e voz.

AGORA, NOITE APÓS NOITE, VEMOS, nas ruas de Paris e outras cidades francesas, desfazer-se esta "construção" que ainda há tão pouco tempo se proclamava sólida e durável, capaz de desafiar o mundo e a América. É provável que ninguém, naqueles subúrbios violentos, pense que um gesto seu tenha qualquer espécie de influência nos destinos próximos da União. Como parece evidente que, ao destruir carros (e já lá vão muitos milhares deles) ou ao incendiar casas e empresas, nenhum daqueles vândalos pensa que está a criticar a ideia federalista ou as novas concepções de soberania e de cidadania europeia. Mas não será exagerado pensar que cada cocktail Molotov lançado no meio da noite atinge também o coração e a cabeça da União e deste festejado "modelo social europeu".

OBCECADOS COM A "CONSTRUÇÃO" federalista, os dirigentes europeus, sobretudo os franceses, esqueceram-se dos seus países, das suas economias, das suas sociedades. Alimentaram um "Estado social" falido, injusto, improdutivo e de colossal desperdício. Deixaram crescer e consolidar-se sociedades racistas e xenófobas, em que brancos e pretos, cristãos e muçulmanos, são igualmente portadores de preconceitos e ódio. E subsidiaram a delinquência étnica. Culparam os brancos e os europeus pelos crimes dos imigrantes. "Compreenderam" e justificaram a violência, desde que esta seja de autoria minoritária, estrangeira ou até francesa de origem étnica. Não perceberam que as instituições de socialização, as igrejas, as empresas e a escola deixaram de cumprir essas funções. E, como alguém me fez notar, desmantelaram o serviço militar obrigatório que poderia ter desempenhado, em países de imigração, uma notável função integradora. Organizaram um "modelo social europeu" que serve para pagar a exclusão e que é também uma escola de fraude e uma recompensa à inutilidade. Quando não ao crime e à violência.

PODERIA DIZER-SE QUE ESTA UNIÃO cai nas ruas de Paris, mas que a Europa dos meus sonhos renasce e tem agora uma oportunidade. Se assim fosse, quase daria por bem-vindos os Molotovs. Mas não é verdade. Nada de bom pode resultar desta violência racial e social, nem das reacções que se adivinham. É possível que as ideias erradas da Europa e do Estado de protecção social acabem pura e simplesmente com uma e outro. E não faltarão, evidentemente, os virtuosos da "construção" a garantir que os culpados são os cépticos que nunca acreditaram e se mantiveram fieis ao "soberanismo", insulto quase obsceno muito em voga. Isto, apesar dos avisos repetidos durante anos: os excessos de Europa federalista e de Estado de assistência eram um risco e poderiam conduzir à perda de responsabilidade dos cidadãos e ao renascer de forças nacionalistas que acabariam por pôr em causa qualquer ideia europeia comunitária. Tal como os riscos do "multiculturalismo" snob e "correcto", sem real integração, que poderiam provocar explosões sociais. De uma coisa os dirigentes europeus e franceses não se podem queixar: a de não terem sido avisados.

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