Público - 14 Nov 05

Medíocre... "quase bom"!

Graça Franco

 

Passou! Com os únicos votos dos autores! Sem honra, nem glória, sem polémica, nem grande novidade. Passou. Realista o suficiente, verdadeiro q.b, ambicioso non troppo. Banal. Submerso num vago elogio de quem, nos últimos anos, viu tanta coisa que até já este pouco lhe basta. Mea culpa! Perdemos a noção da exigência. Desde que a coisa não atinja os níveis da desgraça ou do puro escândalo, já nos parece bem. Estar no bom caminho é tudo o que se lhe exige. E isto devia gerar um sobressalto. Quando se desiste de exigir mais e melhor numa sociedade, o declive fica ainda mais inclinado!
Mesmo tratando-se de um Orçamento, a peça chave da política económica anual, já ninguém parece ter força anímica para exigir à elite, que nos governa, uma visão que vá para além do mero rigor contabilístico. Ninguém reclama pela ausência da estratégia, que Belmiro de Azevedo diz ser essencial. Note-se que até o empresário acaba a rotular de "excelente" o primeiro-ministro responsável por tal falha.
Sintomático. Dou comigo a pensar porque ficámos subitamente assim coniventes. Economistas de todos os quadrantes, analistas de várias tendências, jornalistas, empresários ou banqueiros.
Quase com medo de lhe apontar os defeitos, as fragilidades, as pequenas ou grandes mentiras. De mostrar que este é, por exemplo, um orçamento que repete muitos dos "truques" habituais. Lá está a dotaçãozinha orçamental inchada com a totalidade do aumento dos funcionários públicos. Ora há coisa mais previsível e quantificável que o um aumento salarial? Que lá estivesse aquele pontinho a mais ou a menos que o Governo vai negociar com os sindicatos, ainda vá. Mas tudo? É a inversão da filosofia da verba da dotação e a subversão da verba "despesas com o pessoal"! Mas, já nos parece fantástico que este orçamento, como outros, não congele (retirando essas verbas do cálculo do défice!) as remunerações certas e permanentes destinadas aos pagamentos de alguns meses de salários dos professores. E se congela 40 por cento da Lei da Programação Militar, no mais, não vai além de uns razoáveis 7,5 por cento contra os 20 e tal por cento dos anteriores.
Tolhemo-nos de dizer que é "irrealista" porque, em rigor, queremos acreditar no "milagre". Com as exportações a crescer 5,8 por cento, quatro vezes mais do que está a acontecer. Nada aponta para aí, a não ser uma previsão da OCDE "de seis por cento" que Sócrates exibiu, durante o debate. Fê-lo com a mesma legitimidade de Bagão Félix quando este garantia que espanhóis e franceses partilhavam previsões de preços do petróleo inferiores a 38 dólares por barril para 2005. Rimo-nos na altura e, como esperado, o petróleo galgou os 50!
Agora apetece-nos acreditar que a OCDE não tem nenhum interesse em inflacionar o crescimento das exportações nacionais e agarramo-nos à previsão dos preços do petróleo a 65 dólares para confirmar que o realismo existe.
Consolamo-nos a pensar que os 1,1 previstos para o crescimento do próximo ano não andam longe dos 1,2 previstos por Constâncio. Omitimos depois que na base da previsão de Constâncio estão ainda uns modestos 53 dólares por barril. O próprio veio explicar, há poucos dias, que cada "dez dólares a mais no preço do petróleo" nos roubam qualquer coisa como 0,7 pontos no crescimento. Resumindo: os cálculos de Constâncio com os preços do petróleo de Teixeira dos Santos não ultrapassam uns míseros 0,5 por cento de crescimento em 2006. A diferença está entre continuar na cepa torta ou arrancar para o dobro...
A execução da despesa em 2005 devia incomodar-nos mas queremos freneticamente acreditar que em 2006 será diferente. O Governo não diz onde vai cortar na despesa de pessoal mas o ministro diz "esperar" que haverá substanciais passagens para o quadro de supranumerários. Não quantifica. Passados seis meses de governação, o executivo não colocou no dito quadro nem duas dezenas de funcionários. Apesar disso aceitamos que no final do ano estarão lá uns vinte a trinta mil. Menos do que isso não basta. Não duvido que a João Figueiredo não faltará a vontade e a coragem necessária. Mas será que não faltam a Alberto Costa, a Jaime Silva, a Mário Lino?
Não sei se Teixeira dos Santos conhece um livro sobre a reforma do exército americano com um título quase profético, nesta matéria, "Hope is not a method!".
Também ficámos sem saber de onde virão os 1600 milhões de privatizações. Mas queremos crer que haverá forma de vender, um quase nada de tudo ou um quase tudo de nada, e chegar lá! Em vinte anos de acompanhamento de discussões orçamentais (faltam-me no currículo os três últimos socialistas) penso que foi a primeira em que não falou o ministro da economia. Nem fez falta. Neste OE nada ultrapassa a perspectiva financeira!
Ainda me lembro tão bem dos orçamentos da AD que me pareceu estranho ver a figura de Freitas do Amaral, subir à tribuna para o discurso de encerramento.
Sem certezas na despesa, temos garantido o aumento dos impostos e aí vão dois terços da contenção orçamental. A carga fiscal crescerá no próximo ano mais do triplo do que cresceu em 2005. Quase tudo era previsto, excepto a factura a pagar pelos reformados que viram a sua dedução específica reduzida para 7500 euros. E aí, objectivamente, o Governo mentiu! Mas uma mentirinha ... ainda se deixa passar, sobretudo se a oposição fizer tão mal o trabalho de casa que é incapaz de a denunciar no Parlamento.
Marques Mendes tinha uma vaga ideia da coisa. Tão vaga que nem sabia se os prejudicados eram os que tinham pensões superiores a 335 euros ou a 575 euros. Não é reformado nem imagina como se vive com isso. Tinha o lamiré de que tal coisa não vinha no PEC. Errado. Vem lá, na página 46, como disse Sócrates.
O que Sócrates não disse foi a interpretação da norma feita pelo seu Governo, para consumo interno e para calar os jornalistas, que alertavam para o aumento indirecto dos impostos sobre os pensionistas, caso se concretizasse a anunciada medida de "aproximação gradual da dedução específica da categoria H (pensionistas) à categoria A (trabalhadores por conta de outrem)".
Bastava lembrar o "esclarecimento" de 31 de Maio, no dia do debate ainda estava acessível, na página da net do Portal do Governo. Reza assim no seu 4º parágrafo: " aquilo que se pretende é que aquela dedução especifica (8.283 euros), fique congelada, permitindo assim que a dedução especifica dos trabalhadores por conta de outrem convirja no longo prazo, para aquela)". O texto tinha uma leitura delirante mas, como não se pode antecipadamente dizer que o Governo é mentiroso, tivemos pontualmente de acreditar no delírio.
O Governo para se livrar das críticas _ ainda vinham aí as eleições _ dizia ainda que uma eventual redução da dedução para pensionista só estava "em estudo" " para pensões anuais superiores a 50 mil euros". Afinal bastam 40 mil para o efeito ser substancial Bastam cento e poucos "contos" de pensão e o imposto já sobe!
Marques Mendes se tivesse feito o trabalho de casa talvez pudesse ter recordado tudo isto. Porque o ministro das Finanças responsável pelo "esclarecimento de Maio" não é o mesmo, mas o Governo é! E o primeiro-ministro que obrigou Campos Cunha a emendar a mão ainda é Sócrates.
Queixa-se o ministro Bagão Félix, no texto publicado no Público, de ter sido vítima de uma análise mais crítica. Tem razão. A culpa deve procurá-la nas teses de Cavaco Silva sobre a boa e a má moeda. A má moeda foi deixada demasiado tempo em circulação. Um teste medíocre pode acabar classificado em "quase bom" num processo de avaliação contínua. Há que levar em conta as orais, os trabalhos de casa, os testes anteriores e sobretudo o nível médio da turma! Faz-se a curva de GAUSS e ... ajusta-se! Jornalista

 

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