Diário de Notícias - 14 Nov 05

Modernidade, Miopia e Depravações

João César das Neves

 

O Governo tem, sem dúvida, uma imagem de sensatez e seriedade. Colocando o equilíbrio de médio prazo à frente da popularidade imediata, trava dura luta contra interesses instalados que acumularam benefícios injustos e insustentáveis. Mas noutro campo, inversamente, tem vindo a agravar, com miopia e insensatez, um outro grave problema estrutural.

 

Portugal vive forte desequilíbrio social, manifesto no descontrolo do orçamento. Na última década certos grupos aproveitaram a miopia política para capturar dinheiros públicos muito superiores ao seu contributo para o desenvolvimento. Esta corporatização gerou uma explosão da despesa do Estado que esmaga a economia produtiva. O Governo diagnosticou-o como grande problema estrutural e começou a atacá-lo. A luta será longa, mas são de louvar a perspicácia e coragem.

 

Considerando um horizonte mais largo, porém, as questões mudam de natureza. O verdadeiro problema nacional de fundo é, não o orçamento ou a competitividade, mas a decadência da população. Com forte queda da natalidade, o país acumula gravíssimas dificuldades que vão explodir e se manifestam já no emprego, segurança social, ensino, saúde e até nas finanças. Das escolas sem alunos ao envelhecimento e desertificação, os dramas crescem. O anexo ao Orçamento para 2006 traça o cenário negro da «sustentabilidade da segurança social». O quadro só não é pior graças à imigração que suporta crescentemente a economia e natalidade. Mas traz consigo outros problemas, como a sustentabilidade da cultura e identidade portuguesas.

 

Perante tão terríveis perspectivas seria de esperar uma forte promoção da família, como fazem os parceiros europeus. Infelizmente o Governo ignora-a. Desapareceu a Secretaria de Estado da Família, e a queda da natalidade só é referida uma vez no Programa de Governo (ponto IV); aliás, para concluir coisas como a «diversidade das situações familiares», «critérios de justiça social», «perspectiva pró-igualitária» e «políticas sociais de proximidade», chavões vagos e alheios à questão.

 

A prática concreta ainda é pior. Preocupado com a degradação de imagem pelas lutas laborais contra as reformas, o Governo procura reforçar os seus pergaminhos esquerdistas com políticas familiares abstrusas. A população portuguesa está em decadência e ele pretende liberalizar o aborto e legalizar a prostituição!

 

Mesmo quando parece tratar a questão, o resultado é inverso. O parlamento discute uma lei para regular a «procriação medicamente assistida». É iniciativa meritória, não só por ser uma rara medida a favor da natalidade, mas sobretudo porque o actual vazio legal tem dado aso às piores depravações. Mas o projecto que a maioria se prepara para aprovar inclui as maiores infâmias: experiências científicas com embriões (art. 7º), maternidade de substituição (art. 6º e 27º), bancos de esperma (art. 15º), doação de ovócitos (art. 24º), criação e congelação de embriões excedentários (art. 21º). Portugal vai repetir os horríveis crimes e dramas pessoais e familiares que o abuso destas técnicas causa em tantos países.

 

Como pode um Governo sensato passar ao lado da principal questão nacional? A resposta é simples: toda a gente sabe que ser contra a libertinagem sexual e a favor do casamento é conservador, retrógrado, obsoleto. Ora os nossos políticos são todos progressivos e modernos.

 

Nunca se deve esquecer que os maiores horrores da História foram sempre cometidos em nome da modernidade. Só os que julgam encarnar o futuro se atrevem às destruições mais radicais. Há umas décadas, em nome do progresso, a Esquerda combatia as empresas e o mercado. Hoje, como o Governo, aceita essas instituições mas, em nome do mesmo progresso, agride a família estável e o casamento.

 

As gerações futuras, quando viverem em pleno a decadência social, terão dificuldade em entender as posições actuais sobre a família. Tal como hoje não compreendemos que as barbaridades nazis e marxistas tenham parecido modernas e progressivas aos nossos avós.

 

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