Diário de Notícias - 20 Nov 05

Captura do Estado pelas corporações

Luís Miguel Viana

 

Os dados do absentismo dos professores conhecidos esta semana dão muitos motivos para reflexão. Os alunos em média não têm 10% das aulas, o que põe em questão, só por si, o próprio sistema educativo ou os programas e os períodos de ensino estão mal calculados e contêm partes dispensáveis ou é completamente impossível que os alunos das escolas públicas sejam (ou tenham sido) bem preparados.

Para além deste ponto, que parece importante, há outro dado estimulante os professores têm 67 regimes legais ao abrigo dos quais podem faltar às aulas (para além dos normais períodos de férias de Natal, Páscoa e Verão). Não vale a pena entrar na discussão do mérito de cada uma dessas possibilidades, que vão desde a frequência de congressos (oito dias por ano) até à assistência aos netos, porque resulta por demais evidente qual foi a dinâmica política que levou à multiplicação das excepções: a pressão constante exercida junto dos governos, feita de forma conjunta ou alternada pelos diversos representantes dos grupos profissionais, cada qual batendo-se por este ou por aquele interesse específico.

Os governos, enquanto reflexo das fragilidades da democracia que saiu do 25 de Abril, foram negociando como podiam, mas os dilemas colocados pela massificação do ensino cortaram-lhes o espaço de manobra. Fatalmente, cediam. Ou cediam no dinheiro ou, quando não havia dinheiro, cediam noutras coisas - como na possibilidade de faltar, com legitimidade, às aulas. A um sindicato, num certo ano, cedia-se numa pretensão; com outro, mais à frente, cedia-se noutra. Assim se chegou aos 67 regimes. Mais do que um sistema de co-decisão, que também vigorou, assistiu-se a uma acção corporativa para acumular privilégios.

Os privilégios atribuídos têm, todavia, um problema beneficiando uma classe profissional, prejudicam o bem comum (os alunos tiveram menos nove milhões de aulas do que deviam). Ou seja, são profundamente antidemocráticos na medida em que corroem o princípio da igualdade de oportunidades e impedem o acesso a um bem público: as aulas. Quando coisas deste tipo sucedem verifica-se "uma captura do Estado pelas corporações", como sustentou João de Almeida Santos no comentário a uma conferência de José Conde Rodrigues sobre "Democracia e igualdade", esta semana, no Clube Lusitano. É a própria democracia que fica em risco...

 

[anterior]