Público - 23 Nov 05

Tempos modernos

Joaquim Fidalgo

 

Já por aí andam os novos "negreiros", uma espécie de "navios de escravos", mas mais modernos, claro, mais civilizados, mais bem disfarçados, mais de acordo com este nosso tempo de ganhar o mais possível com o menor custo possível - afinal, o sonho de qualquer gestor que se preza... E o nosso tempo é bem um tempo de gestores. "Gestores profissionais", entenda-se, cheios de economia e de tecnocracia na proporção inversa de ideologia; quem duvidar que veja como anda na mó de baixo essa espécie quase jurássica e supostamente inútil dos "políticos profissionais", que além (ou acima) dos números também prezam as ideias... Adiante, que os debates presidenciais não tardam.
Já por aí andam, dizia eu, os novos "negreiros". A gente lê a história (eu li-a há dias no PÚBLICO, pela pena do jornalista Mário Barros) e espanta-se com o que mais "eles" vão inventar para aumentar rentabilidades! É quase um ovo de Colombo: pega-se numa fábrica e põe-se a fábrica dentro de um barco, depois põe-se o barco em águas internacionais e está feito, acabam-se os impostos a pagar a este ou àquele país, acabam-se as taxas, acabam-se os problemas laborais, porque quem manda ali é apenas quem manda no barco, e quem manda em quem manda no barco - o gestor, o patrão da fábrica. Mas as vantagens não ficam por aqui: pode atracar-se o barco perto do sítio onde se compram as matérias-primas, e poupa-se em transportes; depois, manufacturados os produtos, atraca-se o barco perto do sítio onde se quer proceder à sua venda, e são novos custos de transportes (e de tempo, esse dinheiro imenso de hoje...) que se poupam. Maravilha. Encargos reduzidos, produção bem-comportada, leis de trabalho apenas q.b., margens elevadas, impostos mínimos, preços de venda competitivos... e é só facturar. O capitalismo (peço desculpa pelo arcaísmo...) no seu melhor. Pelos vistos, são chineses que andam a investir neste modelo de produção, comprando madeira e fazendo móveis dentro dos barcos. Mas também há americanos a seguir a receita, produzindo software no alto mar, junto à costa da Califórnia, obviamente com trabalhadores de países de mão-de-obra barata, no caso indianos. E, cá para mim, o exemplo não vai ficar por aqui. Ele é só vantagens...
Isto, sim, é o bom (e literal) espírito das zonas off-shore, uma invenção que eu nunca percebi muito bem, mas que, no essencial, permite criar, dentro de um país, determinadas "bolsa" de excepção, onde a colecta normal de impostos não entra. Há aquelas conhecidas das ilhas Caimãs, das Baamas e da Madeira, pois então, que não somos menos que os outros! Nunca percebi bem como é que eu posso "fazer" uma empresa num certo sítio do país e pagar por ela menos impostos do que os devidos na generalidade desse mesmo país, só porque se decretou que ali era um off-shore ou uma zona franca. Visto por um leigo, parece quase uma forma legal de permitir uma ilegalidade - ou, no mínimo, uma imoralidade. Mas isso sou eu que penso, e eu não percebo nada de economia, finanças ou gestão. E nem sequer devo ser muito moderno. Jornalista

 

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