O baixo individualismo e a alta aversão ao
risco são dos principais problemas da
cultura portuguesa. Assim se percebe que
apesar de na União Europeia, em termos
percentuais, sermos um dos países com menos
licenciados, que um quinto deles vá
trabalhar para o estrangeiro
Oentendimento da tecnologia como cultura, ou seja, a
prática quotidiana possibilitada e
contextualizada pela tecnologia como um
determinado tipo de cultura contemporânea,
que é o que no mais essencial é assumido no
plano tecnológico, constitui um alinhar de
esforços, de práticas e de ambições com o
perfume dos tempos correntes. Claro que os
planos são uma coisa, acontecem no domínio
da reflexão, e as medidas enumeradas são uma
outra coisa, que acontecem ou não num outro
domínio, o da acção concreta que corta o
tempo, separando o passado do futuro. Em boa
medida, o que se passa entre um e outro
domínio, também no caso do plano
tecnológico, depende de uma forma importante
da nossa cultura enquanto comunidade. Não do
grau em que a tecnologia seja já parte da
nossa cultura, mas da nossa cultura
nacional, pré-tecnologia, como ela mesma nos
nossos símbolos, valores, práticas, rotinas
e padrões comportamentais, se tem
manifestado e se manifesta hoje,
mantendo-nos para nós mesmos como nós
próprios somos.
A tecnologia tem vindo a ser estudada e
investigada de variadíssimas formas. Desde
uma prática sistemática, um tipo de arte, ou
a aplicação prática da ciência, à ordenação
eficiente dos recursos, à com-posição
monumental que revela o mundo, muitas têm
sido as perspectivas de entendimento de um
dos fenómenos mais marcantes da história da
humanidade. Mesmo que uma boa parte das
interpretações deste quadro escape à visão
instrumental, algo ingénua, do fenómeno, em
todas elas a tecnologia nos surge com algum
grau de manipulabilidade; como uma
possibilidade de manipulação superior à da
cultura. Pelo menos nas suas camadas
superficiais, talvez a tecnologia possa ser
entendida como a área mais trabalhável e por
isso mais alterável da própria cultura. A
cultura, por seu lado, percebida não apenas
como os valores, as rotinas, as práticas,
etc., que temos, mas antes como aquilo que
genuinamente somos, é então não apenas uma
espécie de lente para ver e ler o mundo mas
antes é os nossos verdadeiros olhos, mente e
sistema nervoso. Assim, hoje, entender a
tecnologia como cultura é uma parte
importante do processo de nos integrarmos na
reordenação do poder mundial.
Não deixando de constituir uma perspectiva
correcta, porque consequente e útil no
ambiente contemporâneo, o entendimento da
tecnologia como cultura pressupõe de alguma
maneira, mais, sugere como futuro, o
entendimento da cultura como tecnologia.
Partir da tecnologia como cultura
levar-nos-á sempre à cultura como
tecnologia. Por isso, um dos grandes
desafios, não apenas nosso, é o de pensar e
possibilitar um quadro global em que cada
cultura, da Europa à África, da América à
Ásia, do Norte ao Sul e do Leste ao Oeste,
tenha possibilidades equitativas de
bem-estar, de paz e de futuro.
Cultura nenhuma é estática, é certo. A
cultura pode mesmo ser entendida como a
dinâmicas como os diferentes grupos e
comunidades se transformam e sobrevivem no
tempo. No entanto, o quadro global actual,
sobretudo porque global, impõe um grau de
homogeneização que, longe de ser claro, está
também longe de ser aceite por aqueles a
quem ele toca. O problema é o de que a nova
ordem global, dos mercados aos produtos
culturais passando pela saúde, pela
indústria e alimentação, foi desenhada ou
simplesmente surgiu, beneficiando
objectivamente determinadas comunidades
nacionais e sociais. As culturas nacionais
mais beneficiadas na nova ordem globalizada
são aquelas onde são fortes os traços do
individualismo e a disponibilidade para
arriscar, bem como onde é menor o peso da
hierarquia e o peso das divisões sociais e
profissionais; todos aspectos onde a cultura
portuguesa não é particularmente forte.
Aliás o individualismo, no sentido de
assentar no indivíduo, singular, a
perspectiva primária da actividade da
sociedade, mais do que a educação formal dos
portugueses é o nosso verdadeiro problema.
Temos uma população com uma das menores
taxas de formação secundária e universitária
entre os países da União Europeia, mas cerca
de um quinto dos nossos licenciados vai
procurar trabalho no estrangeiro... O que
aqui não bate é certo é não existirem,
porque não são criadas nem pelos privados
nem pelo Estado, oportunidades suficientes
para os comparativamente poucos
profissionais qualificados que todos os anos
chegam ao mercado de trabalho. É um problema
de iniciativa, de individualismo, de
resultados e de recompensa, por um lado;
pelo outro lado, é obviamente a velha
questão das corporações, dos mercados
fechados, do poder da mediocridade, das
invejas, dos tráficos de influências.
A não exposição generalizada do país à
concorrência internacional permite que em
muitas hierarquias continuem a subir não os
mais competentes mas os que melhor manobram
nos corredores das influências e dos
enganos. É por isso que, a prazo, uma das
mais importantes medidas do plano
tecnológico é a generalização do ensino do
inglês no primeiro ciclo do ensino básico.
Por muitas e variadas razões, o inglês é
hoje a língua da comunidade global; a prazo,
o domínio do inglês poderá fazer mais pela
iniciativa individual e pela capacidade de
arriscar do que todos os cursos nacionais de
empreendedorismo juntos. E dessa forma,
quando a concorrência passar a ser intensa,
deixa de ser opção não contratar os
melhores.
Cada sociedade é definida pela linguagem que
a estrutura e desenvolve. A comunidade
global assenta no inglês; num novo inglês,
num novo "latim". Não quer isto dizer,
obviamente, que se deva tomar essa
plataforma linguística como única. Esta
questão vai mais longe quando colocada no
domínio da cultura. A cultura é-nos dada,
transmitida no tempo e espaço, pelos nossos
antepassados e não a podemos mudar de um dia
para o outro, nem de forma substancial numa
geração. Se hoje os países anglo-saxónicos,
com uma língua sem "tu" nem "você", são
beneficiados pelo quadro global marcado
pelas redes, pela pouca relevância da
hierarquia, pelo individualismo, noutros
tempos outros tipos de culturas foram as
beneficiadas. No entanto, numa época
obcecada pelo correcto, correcto parece
dever ser que, tal como não é aceitável que
o género, a raça ou a religião constituam
bases de discriminação, também nenhuma
cultura, menos individualista ou menos
avessa à incerteza, possa ser prejudicada
pelo simples facto de ser o que é. Trata-se
de algo imensamente difícil de resolver,
evidentemente. Trata-se de reflectir e em
ultima análise de influenciar o processo da
constituição ontológica da sociedade global.
Professor Universitário